GOLPE MILITAR E ADEQUAÇÃO NACIONAL À INTERNACIONALIZAÇÃO CAPITALISTA (1964-1984)
Romeu Adriano da Silva(1)
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão...
(Chico Buarque)
A
ditadura civil-militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1984
caracterizou-se pelo alinhamento da economia nacional ao padrão
de desenvolvimento capitalista em vigor nos anos 1960 e 1970,
alinhamento este que se traduziu em autoritarismo do Estado (Atos
Institucionais, censuras de toda ordem, repressão, torturas,
ferrenha perseguição a opositores, tudo isso sob
a vigência da Doutrina de Segurança Nacional), em
um modelo econômico altamente concentrador de renda, que
rompeu com um certo equilíbrio existente entre o modelo
político de tendências populistas e o modelo econômico
de expansão da indústria vigentes no período
anterior ao golpe civil-militar, em um conjunto de reformas políticas
e institucionais que visavam a “reconstrução
da nação” e a “restauração
da ordem”, tudo isso se encaminhando para o endurecimento
do regime instalado, defendido como necessário para o “desenvolvimento” social
e econômico do país (CLARK; NASCIMENTO & SILVA,
2005).
A forma
de dominação burguesa (populista), existente no Brasil a partir
de 1946, se mostrou incapaz de preservar as relações fundamentais
do sistema capitalista, sendo a intervenção das Forças
Armadas, em 1964, um meio utilizado pela parcela da burguesia brasileira que
se aliava ao capital internacional, para por fim ao modelo nacionalista de
desenvolvimento e de consolidar a forma imperialista de “progresso” (XAVIER;
RIBEIRO & NORONHA, 1994). Foi a partir do governo de Juscelino Kubitschek
(1956-1960) que se aprofundou a contradição entre modelo político
e expansão econômica, na medida em que, ao mesmo tempo, procurava
manter a política de massas de caráter populista e assumia de
maneira cada vez mais crescente compromissos com o capital, inclusive procurando
atuar no sentido de intensificar a captação de capital estrangeiro.
Assim, o golpe civil militar de 1964 representou a vitória da parcela
da burguesia nacional que defendia a internacionalização da economia,
o que resultou na consolidação de um modelo de desenvolvimento
associado (dependente) ao capital internacional (IANNI, 1975), com uma particular
gravitação em torno do capital norte-americano, numa espécie
de reinvenção, feita pela Ditadura, das relações
de dependência já antigas do Brasil em relação aos
países centrais do capitalismo.
É importante
lembrar que a implantação da ditadura civil-militar não
se deu sem um conjunto resistências. A ditadura, além de representar
a parcela da burguesia que vislumbrava o alinhamento da economia brasileira
ao capital internacional, também procurou dar cabo da “agitação
revolucionária” que se fazia presente em nossa sociedade, configurada
por uma grande constelação de organizações e movimentos:
organizações de trabalhadores, político-partidárias,
movimentos sociais, culturais, artísticos, lutas as mais diversas (como
a levada a cabo pelo movimento estudantil), etc. No âmbito da cultura,
por exemplo, vivíamos aqui uma espécie de “modernismo temporão”.
Para caracterizá-lo, é importante considerar as instigantes sugestões
tecidas por Perry Anderson (1986) sobre o “modernismo”, referindo-se
a situações semelhantes a essas vividas no Brasil nos anos 1960,
que vale a pena considerarmos. Segundo o autor, numa crítica que apresenta
ao livro de Marchal Berman (1986), o “modernismo”:
(...) uma corrente artística unificada, mas um rótulo
para uma infinidade de propostas estéticas que só teriam
em comum elementos negativos, basicamente a crítica ao
academicismo correspondente às sobrevivências sociais
aristocráticas nas sociedades modernas. O florescimento
artístico diferenciado, que se convencionou chamar de
modernismo após a Segunda Guerra Mundial, seria compreensível
pela conjunção de três coordenadas básicas
que tomam a sociedade européia como parâmetro: em
primeiro lugar, a existência forte nas artes de um “academicismo
altamente formalizado (...) Em segundo lugar, “a emergência
ainda incipiente, e portanto essencialmente nova no
interior dessas sociedades, das tecnologias ou invenções-chave
da segunda revolução industrial – telefone,
rádio, automóvel, avião, etc.” Finalmente,
seria decisiva “a proximidade imaginativa da revolução
social”, fosse ela “mais genuína e radicalmente
capitalista”ou socialista. (RIDENTI, 1986, p. 76)
Tal movimentação (uma espécie de “canção
do homem enquanto seu lobo não vem”(2))
era tão intensa que o golpe de 1964 ainda não foi
suficiente para destruí-la por completo, tendo os militares
apelado para o AI-5 (Ato Institucional nº 5), de dezembro
de 1968. É importante lembrar, também, que com
o advento do AI-5, os movimentos de resistência à ditadura
passaram, em grande medida, a ser encabeçados pelas esquerdas
armadas, com as ações das guerrilhas urbanas e
rurais (MR-8, VPR, etc.), que acabaram adentrando a década
de 1970, sendo, com o tempo, aniquiladas pelas Forças
Armadas. A opção pelo combate armado contra a ditadura,
entretanto, não deve ser entendida apenas como “resistência”,
mas como acirramento e expressão das lutas de classes
no Brasil.
A partir do exposto, podemos melhor compreender como no campo
da educação as ações e projetos governamentais
também apontam para um alinhamento ao capital internacional.
Foi sob os auspícios da ditadura civil-militar que foram
assinados os chamados “Acordos MEC-USAID” (Ministério
da Educação e Cultura – United States Agency
for International Development), sendo que os técnicos
da USAID participaram diretamente na reorganização
do sistema educacional brasileiro:
Os acordos deram à USAID um poder de atuação
em todos os níveis de ensino (primário, médio
e superior), nos ramos acadêmico e profissional, no funcionamento
do sistema educacional, através da reestruturação
administrativa, no planejamento e treinamento de pessoal docente
e técnico, e no controle do conteúdo geral do ensino
através do controle da publicação e distribuição
de livros técnicos e didáticos. Essa abrangência
de atuação mostra a importância atribuída à educação
pelos países centrais, na integração e no
posicionamento das sociedades periféricas no contexto
geral do capitalismo internacional. (CLARK; NASCIMENTO & SILVA,
2005, p. 05)
Foi a partir das orientações estabelecidaspelos
acordos MEC-USAID e dos Relatórios do Grupo de Trabalho
da Reforma Universitária e do Relatório Meira Matos,
que foram realizadas as reformas educacionais sob a ditadura,
culminadas com as Leis 5.540/68 e 5.692/71, sendo a primeira
destinada ao Ensino Superior e a segunda aos Ensinos de Primeiro
e Segundo Graus (o que hoje denominamos Ensino Fundamental e
Médio, respectivamente).
Essas reformas acabaram com os movimentos de alfabetização
baseados no método crítico desenvolvido por Paulo
Freire, no qual a educação aparecia ’como
prática da liberdade‘. O método de alfabetização
de Freire seria adotado em todo o país, como previa o
PNA (Plano Nacional de Alfabetização), criado no
governo de João Goulart. O PNA, porém, foi extinto
pelo decreto nº 53.886, 1964 e, para substituí-lo,
a ditadura implantou a CRUZADA ABC (Cruzada da Ação
Básica Cristã), a fim de neutralizar a ação
das Ligas Camponesas e, posteriormente, o MOBRAL (Movimento Brasileiro
de Alfabetização), utilizado como instrumento controlar
politicamente as massas (XAVIER; RIBEIRO & NORONHA, 1994).
Caracterizadas por uma visão utilitarista de educação,
essas reformas se inspiraram na Teoria do Capital Humano, por
pretender estabelecer uma relação direta entre
educação e sistema produtivo, procurando instituir
uma “escola-empresa”, formando mão-de-obra,
consumidores, etc.
A Lei 5.540/68 (da Reforma Universitária) estabeleceu
o fim da cátedra e a departamentalização,
ou seja, o parcelamento do trabalho na universidade, instituiu
os cursos “parcelados” através dos créditos,
adotou o vestibular unificado e classificatório para resolver
o problema da falta de vagas (ao invés de expandir a universidade
pública e “gratuita”) e criou uma estrutura
burocrática para dar suporte ao parcelamento e fragmentação
do trabalho na universidade.
A Lei 5.692/71, de maneira geral, objetivou direcionar o ensino
para a qualificação profissional, “com
a introdução do ensino profissionalizante através
dos ginásios orientados para o trabalho (GOT) e a implantação
da profissionalização compulsória no ensino
de 2º grau” (CLARK; NASCIMENTO & SILVA,
2005, p. 06), em compasso direto com a preparação
para um mercado de trabalho altamente rotativo, dentro do modelo
de industrialização e crescimento econômico
associado e dependente do capital estrangeiro. Outro ponto que é importante
destacar desta lei é que ela postula a extensão
da obrigatoriedade escolar de 1º grau para oito anos. Sobre
essa questão, Jamil Cury observa que
Aumenta-se o tempo da escolaridade e retira-se a vinculação
constitucional de recursos com a justificativa de maior flexibilidade
orçamentária. Mas alguém teria de pagar
a conta, pois a intensa urbanização do país
pedia pelo crescimento da rede física escolar. O corpo
docente pagou a conta com duplo ônus: financiou a expansão
com o rebaixamento de seus salários e a duplicação
ou triplicação da jornada de trabalho. (CURY, 2000,
p. 574)
Assim, a política educacional da ditadura se caracterizou
por proporcionar uma débil formação escolar
e algum tipo de treinamento na formação escolar
básica para inserção nos processos produtivos
e por procurar enfraquecer o ensino superior público e
crítico, abrindo enormes espaços para que a iniciativa
privada pudesse operar no ensino superior. Essa política
educacional foi, também, altamente repressora, atingindo
as diferentes categorias de trabalhadores universitários
(docentes, administrativas, técnicas) do sistema educacional,
de forma a procurar, pelo medo, obter seu consenso ao regime
(CUNHA, 1996). Aos descontentes, além da repressão,
destinou-se também o recado de que não seria fácil
nadar contra essa maré, expresso no seguinte lema: “Brasil:
ame-o ou deixe-o!”
BIBLIOGRAFIA
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In: Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, v. 14, p. 2-15, fev.
1986.
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no ar. São Paulo: Cia. das Letras, 1986.
CLARK, Jorge Uilson; NASCIMENTO, Manoel Nelito Matheus & SILVA,
Romeu Adriano. A Administração Escolar no Período
do Governo Militar (1964-1984). Texto Inédito, 2005.
CUNHA, Luiz Antônio. A universidade crítica.
2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
CUNHA, Luiz Antônio & GÓES, Moacyr. O golpe
na educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1996.
CURY, Carlos Roberto Jamil. A educação como
desfio na ordem jurídica. In. LOPES, Eliane M; FARIA
FILHO, Luciano Mendes & VEIGA, Cynthia G. (orgs.). 500
anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.
GERMANO, José Willington. Estado Militar e Educação
no Brasil (1964-1985). São Paulo: Cortez, 1994.
IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975
NOGUEIRA, Francis Mary Guimarães. Ajuda Externa para
a Educação Brasileira: da usaid ao banco mundial.
Cascavel, PR: EDUNIOESTE, 1999.
RIBEIRO, Maria Luísa Santos. História da Educação:
a organização escolar. Campinas, SP: Autores
Associados, 1998.
RIDENTI, Marcelo Siqueira. O Fantasma da Revolução
Brasileira. São Paulo: Unesp, 1993.
XAVIER, Maria Elizabete Sampaio Prado; RIBEIRO, Maria Luísa
Santos & NORONHA, Olinda Maria. História da Educação:
a escola no Brasil. São Paulo: FTD, 1994.
(1) Doutorando
na Área de História e Filosofia da Educação
/ Unicamp.
(2) Essa
expressão é título do segundo capítulo
do livro de Marcelo Ridenti. Ver RIDENTI, Marcelo Siqueira. O
Fantasma da Revolução Brasileira. São
Paulo: Unesp, 1993.
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