Livro de reflexões morais,
do século XVIII, do Padre Manoel Bernardes da Congregação do Oratório de Lisboa
(1644-1710). As reflexões do P. Manoel Bernardes tiveram as licenças e
aprovação da Congregação do Oratório da Cidade de Lisboa, e licença
e aprovação do Qualificador do Santo Oficio de Lisboa.
BERNARDEZ,
Padre Manoel. Nova Floresta, ou Sylva de Vários Apophthegmas, E
Ditos sentenciosos espirituaes, e moraes... Lisboa: Na Officina
de Valentim da Costa Deslandes, Impressor de S. Magestade. 1706. Ed. fac-similada. In: Obras Completas do
Padre Manuel Bernardes. São Paulo: Editôra Anchieta
S.A., 1945.15 v.
“Quanto ao outro cargo, que era tratar os domésticos com mesquinhez, e miseria: tambem contra este vicio
temos doutrina nas divinas, e humanas letras. S. Paulo diz, que se alguem não tem especial
cuidado da sua familia, he peyor
que o infiel. Onde por aquella palavra Cuidado não se entende só o de lhe dar doutrina, reprehensão, e castigo quando he merecido: senão tambem o comer, e vestir, confórme
for necessario. Em outro
lugar, havendo amoestado aos escravos, e criados, que
amem, obedeção, e sirvão
aos senhores: amoesta igualmente a estes, que usem
com elles dos mesmos bons termos respectivamente
(...) E Salomão descrevendo huma boa mãy de familias, põem entre
outros seus louvores, o levantarse de noite a tratar
do provimento de suas criadas e de todos seus domesticos
(...) e o não padecerem elles o rigor do frio, porque todos desde o mayor atè o infimo tem vestidos
dobrados (...)e atè o deixar de noite luz acesa (...)
Quando o servo he sizudo, e bem procedido, não se
contenta o Ecclesiastico, com que seu senhor o trate
bem; senão, que o remunere, e o não deixe pobre por sua morte...
S. Bernardo (...) estende a obrigação deste cuidado atè
aos brutos animaes (...) Que dissera logo dos
criados, e servos? Se bem que alguns senhores, e amos há, que pertencendo tambem ao numero de brutos, não vão para com elles este argumento. Porque tratando bem os seus cães, e cavallos, e passaros, se esquecem
dos seus servos, e criados; antes os praguejão, amaldiçoão, e espancão se faltàrão no serviço daquelles. Já
houve pessoa que deixou no seu testamento hum legado à sua gata de quinhentos
escudos de ouro, para que lhe dessem sempre de comer em abundancia. Tenho para
mim, que não usaria da mesma providência com qualquer servo seu: antes me
parece certo, que uma vez que este animalejo era tão amado, por seu respeito
haveria em cada casa não poucos enfados, e pelejas: porque tanto que há
desordem por hum extremo, não para atè chegar a outro
extremo, contrario: e de amar aos animaes, que se te
há de seguir, senão amar aos proximos? (...) O Abbade Antonio Moreira Camello no
seu livro intitullado Paroco
perfeito, traz alguns outros casos de semelhantes Amos mesquinhos, e entre elles hum rol de 44 artigos, ou addições,
que foy achado a certo Beneficiado de sangue illustre em que taxava varias multas pecuniarias
à sua ama, por descuidos que tivera em levissimas
cousas da sua casa. Porèm outros não levão isto por pena pecuniaria;
senão de açoites; e se o reo he seu escravo, e se
impacienta, ou insiste em negar com verdade, ou mentira, o que contra elle se presume, a hi he o
acender-se a colera do senhor. E castigallo
desapiadamente, atè quasi o por no precipicio da
desesperação; sem attender a que a differença da fortuna não pode prevalecer à semelhança da
natureza; e que o bem de huma alma
vale mais que muita fazenda...
Verdadeiramente o homem mesquinho he tres
vezes miseravel, como lemos em Stobeo:
Parcus ser miser: miseravel pelo que não
dà; miseravel pelo que
ganhara, se dera; e miseravel pelo que perde, porque
não deu: ou tambem miseravel
com o seu corpo, miseravel com a sua alma, e miseravel com a sua familia.
Considerem pois os taes,
como nem ao seu serviço, nem ao seu credito, nem à sua fazenda póde estar bem este modo de proceder. Ao teu serviço, não;
porque os bons servos, e criados são os que tem amor: so tem amor os que são bem tratados. Ao seu credito, não
porque pela fome, e desluzimento dos domesticos, se conhece claramente a miseria
do amo: e elles são os primeiros que a murmurão e publicão. A sua
fazenda, tambem, não; porque tudo o que elle forra por uma parte, lhe furtão
pela outra: e os fragmentos que o Senhor no Evangelho mandou recolher, são os
que sobrarão da esmola, depois de bem abafadas as turbas; e não o que se cizão, e defraudão do necessário,
que estes danificão o outro pão a que se ajuntão. E ainda sem ser por via de salario
devido, senão a titulo de esmola, bem empregada esta nos criados, que sem
duvida o não serrão seus, se a necessidade os não
obrigasse a servir; e não he menos trabalhoso, antes mais util
para a Republica, o merecer o pão servindo nas casas, do que o mendigallo pedindo pelas portas” (Tomo
I, V.I, p.440-445).
Que hum Pontifice, ou hum Rey,
ou outro qualquer grande Prelado, para fazer como deve o seu officio, há de viver para os outros, & não para si, he
verdade pura e indubitavel, Assi, como servir a Deos he reynar,
assi reynar sobre homens he
servir: só resta a consolação de que reynando
sobre homés por servir a Deos,
neste mesmo servir se torna a reynar, não sobre
homens, mas sobre si mesmo. Por conseguinte o Principe
Ecclesiastico, ou secular, que não reyna para servir, tambem não serve para reynar. Muita razão teve certo autor
moderno, que trasladando os avisos politicos do
sobredito Agapeto, lhe poz
por titulo: De Regis, seu servi publici munere pracepta: Maximas do officio do Rey, ou servo publico. Mais authentico temos este nome nos Summos
Pontifices, que todos se intitulão
servos dos servos de Deos. Introdusio
este estilo S. Gregorio, para despertador das suas
obrigações; & reprehensão do typho,
ou presunção com que João Jejuador Patriarca de Constantinopla se intitulava
Patriarca Oecumenico, isto he, Universal, convindo
este appelido só aos sucessores de S. Pedro em Roma.
Muitos outros prelados inferiores & entre elles
Santo Agostinho S. Bonifacio, Santo Anselmo, & S.
João Esmoler, uzàrão, deste mesmo epiteto
de servos dos servos de Deos: porque não aceitaram a
dignidade, senão por acodir às suas obrigações, &
reconheciam que estas constituem em servir de dia, & de noite aos seos subditos, para que elles possão melhor servir a Deos...
Que pezo seja pois
este de não viver para si, mas para os outros, sendo servo publico, & commum de todos, só quem o leva ás costas poderá explicallo. Disse com reflexão: Quem o leva ás costas;
porque muitos o tem, mas não o levão;
ou porque não cumprem suas continuas, & gravissimas
obrigações, ou porque as encomendão a outros, que he
o mesmo que fazerem-se poucas, & mal, & tarde: estes tem a dignidade
debaixo de si, & não sobre si; gozão della o honorifico, & não servem o oneroso. O final
certo de se um Prelado està debaixo da sua dignidade,
ou sobre ella, é ver se geme, ou não geme com ella. Porque por gigante que seja nas forças do espirito, se não geme he porque a não lavãta
em pezo... ” (Tomo II, V.II, p.206-208).
Do Emperador Rodolfo.
Assistindo este Monarca ao exercicio de huns frècheiros, que se ensayavão, disparou um delles a setta tão desencaminhadamente,
que ferio ao Cesar (...) Dizião
alguns: Mande Vossa Magestade cortar a mão. Respondeo, disfarçando a clemencia
com a graciosidade: Bom remedio, e a bom tempo: a mão, que já
atirou, que me aproveita, que a cortem agora. Por ventura a sua ferida cura a
minha?
Mas quisera eu agora a este proposito dizer
alguma cousa de outro genero de frècheiros,
que errão o seu alvo com perigo, e damno seu mayor infinitamente, E quaes são estes? Todos os que não somos bons Christãos. E se não digão-me:
Qual he o alvo, aonde qualquer homem deve encaminhar os seus tiros? He
salvar-se, para ver, gosar, e louvar a Deos eternamente. Para este fim o tirou a Omnipotencia do Creador do abismo
do não ser, e o fez semelhante a si (...) E para onde vão encaminhadas as
nossas settas; isto he as nossas diligencias e
desejos? Pela mayor parte (ainda mal) a gozarmonos desta vida presente, cumprindo cada hum a sua
vontade por todos os modos, que pòde: e assim vamos
passando, sem reparar onde vamos parar. Pòde haver
tiros mais desviados, que estes: pois em vez de ferirmos o alvo, nos ferimos a nòs mesmos? Há erro mais descompassado; pois o alvo està em cumprirmos a vontade de Deos,
e a setta dirigese a
cumprirmos a vontade propria; o alvo està no Ceo, e a setta vay à
terra, e da hy para o inferno. (...) Que serà dos que para tudo o mais olhão:
Honras, dignidades, officios, ornamentos, applausos, regalos, dinheiro, e mais dinheiro feliz saude, larga vida, fortuna (...) E na vida eterna, no seculo futuro, no bem para que fomos creados,
e remidos, para aqui, ou não mandamos settas, ou são
fracas, que logo cahem sem effeito
(...) Ponderese agora, quem poderá disculpar este erro de irem as nossas settas
tão fora de hum alvo, tão grande, e tão patente, não podendo ser sem formal
malicia, e sem evidente perigo de recahirem as settas sobre nòs mesmos , com
ferida incuravel de morte eterna...
Tenho razão de me indignar aqui contra alguns Prègadores
deste tempo; porque por obrigação de seu officio lhes
compete avisar os fieis deste perigo, com espirito nervoso, e forte, e em fim apostolico:
e elles pelo contrario (falo não de todos, mas de
muitos) tambem derão em maos frecheiros, que não atirão ao alvo. Frequentemente nas Divinas Escrituras se da
aos Pregadores o nome de Sagittarios, ou frecheiros. E qual he o alvo, onde deve atirar hum Prégador, verdadeiramente Prégador?
He certo, que o converter almas, ensinando virtudes, reprehendendo
vicios, e propondo-lhes o que conduz, para o desprezo
do Mundo, abominação do peccado, memoria
da morte, imitação de Christo, temor, e amor de Deos nosso Senhor. E aonde vemos nós, que vão
ordinariamente parar as suas settas? A mostrarse discreto, erudito, eloquente, agudo, para que o auditorio
se deleite, e applauda, e o busque mais vezes, e lhe
pague, ou se mostre muy pago do que ouvio. Póde haver tiros mais
desencaminhados que estes? Ó tu pecador, que andas cravado
há tantos annos no lodaçal profundo de teus viciolos costumes: vem cà, poemte bem de fronte do pulpito,
(como outro Diogenes ao pè
do alvo,) que não hajas medo, que o Prègador te fira,
nem toque: não recees, que te fira o coração, nem
ainda toque na materia, que podia envergonharte.
não vem a que te compunjas,
se não a que te admires: não a que velas o que importa no governo da tua consciencia, se não a que louves como discorre no governo
do Reino: não traz sentenças graves de Santos Padres, se não equivocos, e trocadilhos, e pitectos
Poeticos. Em fim Conversi sunt
in arcum pravum, o arco da intenção torceose; como hão de sahir as settas direitas?...
Pois quem torceo este arco? Quem? O diabo,
que tudo torce, e destroe, e desencaminha. S. Epiphanio conta, que determinando hum bom Christão por nome Joseph edificar uma igreja, os Judeos com encantos diabolicos
lhe atàrão a virtude do fogo, de modo, que não podia
cozer os ladrilhos necessarios para as paredes, e bovedas da Igreja. Joseph vendo impiamente impedido o seu
zelo de honra Divina, e bem espiritual dos fieis, que fez? Entendendo a causa
do mal, desatou a atividade aprisionada daquelle forte elemento, com o sinal da Cruz, e aspersoens de agua benta; e logo
o fogo fez seu officio. Applico
a historia. O Prégador fazendo o seu officio, edifica a Igreja, que são os fieis. A palavra
Divina he fogo: Igitum elequium tuum vehementer, com este fogo se coze, e fortifica o que o nosso barro tem de cru, por parte de filhos de
Adam. Que faz o inimigo, para impedir o edificio, ou
a edificação? Ata a palavra de Deos. Com que? Com
outras palavras, que não são de Deos, se não
encantamentos, que fazem prurito nos ouvidos, como
dizia o Apostolo, e os desvião, e fazem aversos à verdade. (...) E deste modo bem se ve, que o Prégador não fica
edificando, se não encruando mais os ouvintes; se molles,
e fracos vinhão, fracos e molles
tornão: Porque? Porque não houve fogo, que os
cozesse: algumas palavras, que no Sermão ouvirão de Deos,
vão encantadas com outras muy contrarias ao espirito de Deos. Por que remedio? Desatar o fogo da palavra de Deos:
Verbum Dei non
est alligatum. E como se delatão? Endireitando a tenção a
servir a Christo, e prégando
a Christo, e não a si proprio;
a Christo digo, e elle crucuficado; e desejando de veras, que a aspersão de seu
Sangue, significada na agua benta, aproveite a todos.
Havendo fogo delatado, logo a Igreja se edifica. Mas se assim o não fizerem os Prégadores, já quem torce a nossa intenção, não é só o
inimigo, se não elle com nosco,
e nós com elle. Oh que castigo nos espera! Ninguem se persuada, que este torcer o nosso officio ,
carece de peccado... (Tomo IV, V. IV, p. 13-15 ).
Distribuhia
esta illustre, e piedosa Senhora em esmolas, e obras
de piedade a mayor parte de sua fazenda. A hum, que
lhe quis ir à mão, e estreitar sua liberalidade, disse: << não posso
crer, que haja olhos nobres, que vejão necessidades,
e as não procurem remediar>> disse bem: Olhos nobres; porque a pessoa
esmoler he filiada no livro do Rey do Ceo; pois a esmola feita por amor de Deos,
he sinal de predestinação (...) A dignidade do Nobilissimado
concedia-se somente aos filhos segundos do Emperador,
e a alguns parentes mais chegados. E no Ceremonial da
Igreja Grega havia benção particular para os Nobilissimos,
quando hião ao templo, e se conferia este titulo
solenemente. Como todos os Varoens misericordiosos
são filhos segundos do Emperador das alturas, por
parte de Christo, que he filho natural de Deos; que muito qué todos sejam Nobilissimos; e haja para elles
no dia do Senhor benção particular...
Para significar a vaidade da Nobreza mundana, traz um Discreto por symbolo hum jogo de Xadrez, com as suas peças armadas, e
por letra lhe ajunta: Non re, sed
nomine distant. No nome, e não no ter se differenção.
Assim he na verdade; porque no taboleiro deste mundo o serem huns
Reys, e outros Roques: huns
Delfins, e outros Peoes, não procede da materia, nem da fórma, que em
todos he a mesma: procede só da estimação arbitraria dos homens, que differenciou estes nomes, e lugares, e lhes assignou diverso valor no jogo, e da invariavel
variedade da fortuna, que ao mesmo lance expoem
riquezas, e Nobreza ...
E Seneca com Platão trocando as peças do
Xadrez entende, que não há Rey, que não descenda de
servos, nem servo, que não descenda de Reys; e que os
tempos fizeram essa batalha (...) Naõ corre porèm esta filosofia, quando sobre o ouro da Nobreza cahe o esmalte da virtude, e na arvore da ascendencia se acompanha a antiguidade do tronco, e
propagação dos ramos, com a fecundidade de santas obras. Já neste caso as peças
do jogo, Tum re, tum nomine distant. No nome, e mais mo ter se differenção: O Rey, que exercita acçoens Reaes, não he Rey de Comedia, mas
de verdade. O Cavalheiro, que se apeya para acodir ao miseravel, não fica
Peão por isso, mas antes mais cavalheiro...
Pelo
contrario os avarentos, por illustre que seja o seu
sangue, elles em si são mecanicos,
e escurissimos: e sendo o sangue vehiculo
dos espiritos, quem não tiver bons espiritos parecerà, que não tem bom
sangue; porque o estado da ascendencia não deveria desmentirse com o curso das acçoens:
Os escuros da terra (diz o Psalamita) estão cheyos de casas de maldades. Escuros da terra são os
avarentos; assim como os caritativos, e esmoleres são os illustres
do Ceo...
De S. João Esmoler, Patriarca de Alexandria.
Tanto que este Santo Prelado tomou posse, e se assentou na Cadeira do
Patriarcado da Alexandria, chamou logo os seus Mordomos, e lhes disse: Naõ é justo tenhamos cuidado de
alguem primeiro que Christo:
ide pela cidade, e tomay em lista todos os meus
Senhores. Duvidando quem eram os Senhores do
Patriarca, respondeo o Santo: são os pobres,
porque elles me podem dar entrada no Reyno dos Ceos...
Se este Santo Patriarca chamava seus Senhores aos pobres, com mais
razão chamava o Patriarca S. Francisco à pobreza sua Senhora; porque (...) se
no Mundo a riqueza he tão Senhora dos avarentos, que chegão
a adoralla; bem se infere, que a pobreza há de ser
Senhora dos esmoleres. Por isso David dizia (...) Se tiverdes riquezas, não lhe
fometais o coração. Como se dissesse: De modo as possui, que ellas vos não possuão (...) Mas que muito que a pobreza seja Senhora dos
Servos de Deos, se o mesmo Deos
tomando forma de servo, servio a os pobres, e amou a
pobreza. Tanto amou Christo a pobreza, que tudo que
lhe tocava neste mundo escolheo pobre: Mãy pobre, Pay putativo pobre, Patria pobre Nazareth, da qual a juizo
da Nathanael, nada bom se esperava, e Belem por sentença do Profeta, a minima
entre as tribos de Juda: vestidos pobres, manjares
pobres, Discipulos pobres: cama para nascer de
palhas, para morrer de madeiros, onde lhe faltou huma
pouca de agua para matar a sede, e huma pouca de terra para sepultar o corpo; e havendo de ser
encravados seus pes Sacratissimos
(he pensamento do mesmo Serafico Padre S. Francisco)
não quis para elles dous
cravos, porque hum bastava para ambos, ainda que à custa de mayor
tormento. Assim que se o Senhor dos
Senhores com a alma, e com o corpo servio a pobreza; jà he razão forçosa, que todos os seus servos o sejão tambem da pobreza, e dos
pobres...
Porem este Santo Prelado chamava aos pobres seus Senhores, não só
porque os servia, e amava; senão tambem porque
esperava por seu meyo ser admittido no Reyno
dos Ceos: que os pobres (como disse um discreto)
são os Eleitores do Imperio, com cujos votos entramos
na posse daquella immortal
Coroa. E se atè do lucro da iniquidade
póde provir effeito felicissimo, segundo a sentença de nosso Salvador (...)
Quanto mais serà devido à esmola pura, e do proprio? Para termos entrada com Deos,
a melhor porta he a da misericordia, que nòs abrimos aos pobres. He digno de reparo que dispensando
Salomão tão immensos thesouros
na fabrica do templo, e fazendo o Sancta Sanctorum todo forrado de pranchas de ouro macisso, as portas do Oraculo as
fizesse de oliveira; como se faltassem os evanos, e
os ciprestes ou as aguilas, e calambucos
(...) Porèm sabido he vulgarmente, que a oliveira he symbolo
da misericordia. Bem dictou
logo o Espirito Santo, Arquiteto desta obra, que as
portas fossem de oliveira; porque para a casa de Deos
não há porta mais franca, que a da misericordia, e
caridade, que nòs tivermos com os necessitados.
Com que este Santo mandando alistar os pobres a milhares, era o mesmo, que
abrir para si de par em par as portas do Ceo...
A milhares, digo, de pobres; porque com effeito
se matricularão naquella lista sete mil e quinhentos
Senhores, e a todos mandava dar o sustento quotidiano. E tanto deu este
glorioso Santo, e com tão prompta vontade, que jà proximo à morte fez o seu
testamento nesta forma: João humilde Servo dos Servos de Deos, e só
livre pela dignidade Pontifical, e graça de Christo,
Graças vos dou meu Deos, e Senhor, que me fizestes
digno de vos offerecer o que me destes vòs mesmo: de sorte que de todos os bens do Mundo não me
resta mais que a terça parte de hum dinheiro, a qual mando dar tambem a meus Senhores os pobres. Ao entrar no Bispado de
Alexandria, achey oito libras de ouro: de offertas pias recolhi mais de dez mil. E conhecendo ser
tudo de Christo, a Christo torney tudo, e agora lhe entrego a alma. Atè aqui o Santo, que partia desta vida bem
encaminhado pelas portas de Oliveira. E atè os Santos
buscão estas para entrar no Ceu,
como as escusaremos os peccadores? ” (Tomo IV, V. IV, p.447-452).