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Livro de reflexões morais, do século XVIII, do Padre Manoel Bernardes da Congregação do Oratório de Lisboa (1644-1710). As reflexões do P. Manoel Bernardes tiveram as licenças e aprovação da Congregação do Oratório da Cidade de Lisboa, e licença e aprovação do Qualificador do Santo Oficio de Lisboa.

 

BERNARDEZ, Padre Manoel. Nova Floresta, ou Sylva de Vários Apophthegmas, E Ditos sentenciosos espirituaes, e moraes... Lisboa: Na Officina de Valentim da Costa Deslandes, Impressor de S. Magestade. 1706. Ed. fac-similada. In: Obras Completas do Padre Manuel Bernardes. São Paulo: Editôra Anchieta S.A., 1945.15 v.

 

“ETHYMOLOGIAS E DOUTRINA

O nome Abbade corresponde no Hebraico Ab: no Syriaco, que era o Hebraico vulgar, Abbas & os Gregos, & Latinos, dando-lhe terminação a seu modo, disserão abbas: quer dizer Pae (...) Dava-se pois aos Superiores, & Prelados o titulo de Abbades: porque na idade, & no amor, & cuidado dos subditos (& tambem pela geração espiritual em razão da doutrina, & bom exemplo) erão, ou devião ser Paes. Por este mesmo respeito deu Romulo o titulo de Paes àquelles cem cidadãos mais velhos & sabios, que escolheo para seos conselheiros, & ministros (...) Despoes Tarquinio elegeo outros cem, & lhes chamou Patricios (...) E como a razão de Pae, & de Superior, & Ministro, & a capacidade para governar, suppoem ordinariamente idade provecta: por isso estes Paes da Republica, se diziam Senadores, e o lugar onde se ajuntavão Senado: tomada a derivação de SeneEtus, a velhice, como advertio João Saresberiense (...) Porque emfim he certa aquella sentença de S. Gregorio M: que nem madeyra verde serve para edificios, nem gente moça para governos...

 

Tambem a palavra Ancião veyo de Antiannus, Latim antiquado, & barbaro: onde a preposição Ante  indica que os Anciãos nos vão diante nos annos, & ordinariamente tambem na dignidade, & honras. Semelhantemente dizemos da palavra Senhor, que he o mesmo que Senior, O mais velho, corrupto o i em h, & carregando o accento na final, como costumão os Hespanhoes, & Francezes. E porque os mais velhos são os que procedem, & governão, & dominão; já o nome Senhor veyo a não significar a idade maior, senão o dominio, & poder. E ainda  que a pessoa nenhum dominio tenha, nem poder, nem ancianidade: todos querem ser nomeados por senhor. E até nas cartas missivas se faz differença do lugar em que vae escrito este titulo: porque no meio Em outro lugar, havendo da frente do papel denota mais reverencia de quem escreve, do que se o puzer à margem interior. Por isso certo fidalgo, a que lhe enviou a pedir o coche emprestado, & se descuidou desta ceremonia, repondeo escusandose com que as mulas andavão occupadas em acarretar o senhor para o meyo(Tomo I, V. I, p.248-249).

 

“Quanto ao outro cargo, que era tratar os domésticos com mesquinhez, e miseria: tambem contra este vicio temos doutrina nas divinas, e humanas letras. S. Paulo diz, que se alguem não tem especial cuidado da sua familia, he peyor que o infiel. Onde por aquella palavra Cuidado não se entende só o de lhe dar doutrina, reprehensão, e castigo quando he merecido: senão tambem o comer, e vestir, confórme for necessario. Em outro lugar, havendo amoestado aos escravos, e criados, que amem, obedeção, e sirvão aos senhores: amoesta igualmente a estes, que usem com elles dos mesmos bons termos respectivamente (...) E Salomão descrevendo huma boa mãy de familias, põem entre outros seus louvores, o levantarse de noite a tratar do provimento de suas criadas e de todos seus domesticos (...) e o não padecerem elles o rigor do frio, porque todos desde o mayor atè o infimo tem vestidos dobrados (...)e atè o deixar de noite luz acesa (...) Quando o servo he sizudo, e bem procedido, não se contenta o Ecclesiastico, com que seu senhor o trate bem; senão, que o remunere, e o não deixe pobre por sua morte... 

 

S. Bernardo (...) estende a obrigação deste cuidado atè aos brutos animaes (...) Que dissera logo dos criados, e servos? Se bem que alguns senhores, e amos há, que pertencendo tambem ao numero de brutos, não vão para com elles este argumento. Porque tratando bem os seus cães, e cavallos, e passaros, se esquecem dos seus servos, e criados; antes os praguejão, amaldiçoão, e espancão se faltàrão no serviço daquelles. Já houve pessoa que deixou no seu testamento hum legado à sua gata de quinhentos escudos de ouro, para que lhe dessem sempre de comer em abundancia. Tenho para mim, que não usaria da mesma providência com qualquer servo seu: antes me parece certo, que uma vez que este animalejo era tão amado, por seu respeito haveria em cada casa não poucos enfados, e pelejas: porque tanto que há desordem por hum extremo, não para atè chegar a outro extremo, contrario: e de amar aos animaes, que se te há de seguir, senão amar aos proximos? (...) O Abbade Antonio Moreira Camello no seu livro intitullado Paroco perfeito, traz alguns outros casos de semelhantes Amos mesquinhos, e entre elles hum rol de 44 artigos, ou addições, que foy achado a certo Beneficiado de sangue illustre em que taxava varias multas pecuniarias à sua ama, por descuidos que tivera em levissimas cousas da sua casa. Porèm outros não levão isto por pena pecuniaria; senão de açoites; e se o reo he seu escravo, e se impacienta, ou insiste em negar com verdade, ou mentira, o que contra elle se presume, a hi he o acender-se a colera do senhor. E castigallo desapiadamente, atè quasi o por no precipicio da desesperação; sem attender a que a differença da fortuna não pode prevalecer à semelhança da natureza; e que o bem de huma alma vale mais que muita fazenda...

 

Verdadeiramente o homem mesquinho he tres vezes miseravel, como lemos em Stobeo: Parcus ser miser: miseravel pelo que não ; miseravel pelo que ganhara, se dera; e miseravel pelo que perde, porque não deu: ou tambem miseravel com o seu corpo, miseravel com a sua alma, e miseravel com a sua familia. Considerem pois os taes, como nem ao seu serviço, nem ao seu credito, nem à sua fazenda póde estar bem este modo de proceder. Ao teu serviço, não; porque os bons servos, e criados são os que tem amor: so tem amor os que são bem tratados. Ao seu credito, não porque pela fome, e desluzimento dos domesticos, se conhece claramente a miseria do amo: e elles são os primeiros que a murmurão e publicão. A sua fazenda, tambem, não; porque tudo o que elle forra por uma parte, lhe furtão pela outra: e os fragmentos que o Senhor no Evangelho mandou recolher, são os que sobrarão da esmola, depois de bem abafadas as turbas; e não o que se cizão, e defraudão do necessário, que estes danificão o outro pão a que se ajuntão. E ainda sem ser por via de salario devido, senão a titulo de esmola, bem empregada esta nos criados, que sem duvida o não serrão seus, se a necessidade os não obrigasse a servir; e não he menos trabalhoso, antes mais util para a Republica, o merecer o pão servindo nas casas, do que o mendigallo pedindo pelas portas(Tomo I, V.I, p.440-445).

 

Que hum Pontifice, ou hum Rey, ou outro qualquer grande Prelado, para fazer como deve o seu officio, há de viver para os outros, & não para si, he verdade pura e indubitavel, Assi, como servir a Deos he reynar, assi reynar sobre homens he servir: só resta a consolação de que reynando sobre homés por servir a Deos, neste mesmo servir se torna a reynar, não sobre homens, mas sobre si mesmo. Por conseguinte o Principe Ecclesiastico, ou secular, que não reyna para servir, tambem não serve para reynar. Muita razão teve certo autor moderno, que trasladando os avisos politicos do sobredito Agapeto, lhe poz por titulo: De Regis, seu servi publici munere pracepta: Maximas do officio do Rey, ou servo publico. Mais authentico temos este nome nos Summos Pontifices, que todos se intitulão servos dos servos de Deos. Introdusio este estilo S. Gregorio, para despertador das suas obrigações; & reprehensão do typho, ou presunção com que João Jejuador Patriarca de Constantinopla se intitulava Patriarca Oecumenico, isto he, Universal, convindo este appelido só aos sucessores de S. Pedro em Roma. Muitos outros prelados inferiores & entre elles Santo Agostinho S. Bonifacio, Santo Anselmo, & S. João Esmoler, uzàrão, deste mesmo epiteto de servos dos servos de Deos: porque não aceitaram a dignidade, senão por acodir às suas obrigações, & reconheciam que estas constituem em servir de dia, & de noite aos seos subditos, para que elles possão melhor servir a Deos...

 

Que pezo seja pois este de não viver para si, mas para os outros, sendo servo publico, & commum de todos, só quem o leva ás costas poderá explicallo. Disse com reflexão: Quem o leva ás costas; porque muitos o tem, mas não o levão; ou porque não cumprem suas continuas, & gravissimas obrigações, ou porque as encomendão a outros, que he o mesmo que fazerem-se poucas, & mal, & tarde: estes tem a dignidade debaixo de si, & não sobre si; gozão della o honorifico, & não servem o oneroso. O final certo de se um Prelado està debaixo da sua dignidade, ou sobre ella, é ver se geme, ou não geme com ella. Porque por gigante que seja nas forças do espirito, se não geme he porque a não lavãta em pezo... (Tomo II, V.II, p.206-208).

 

Do Emperador Rodolfo.

 

Assistindo este Monarca ao exercicio de huns frècheiros, que se ensayavão, disparou um delles a setta tão desencaminhadamente, que ferio ao Cesar (...) Dizião alguns: Mande Vossa Magestade cortar a mão. Respondeo, disfarçando a clemencia com a graciosidade: Bom remedio, e a bom tempo: a mão, que já atirou, que me aproveita, que a cortem agora. Por ventura a sua ferida cura a minha?

 

Mas quisera eu agora a este proposito dizer alguma cousa de outro genero de frècheiros, que errão o seu alvo com perigo, e damno seu mayor infinitamente, E quaes são estes? Todos os que não somos bons Christãos. E se não digão-me: Qual he o alvo, aonde qualquer homem deve encaminhar os seus tiros? He salvar-se, para ver, gosar, e louvar a Deos eternamente. Para este fim o tirou a Omnipotencia do Creador do abismo do não ser, e o fez semelhante a si (...) E para onde vão encaminhadas as nossas settas; isto he as nossas diligencias e desejos? Pela mayor parte (ainda mal) a gozarmonos desta vida presente, cumprindo cada hum a sua vontade por todos os modos, que pòde: e assim vamos passando, sem reparar onde vamos parar. Pòde haver tiros mais desviados, que estes: pois em vez de ferirmos o alvo, nos ferimos a nòs mesmos? Há erro mais descompassado; pois o alvo està em cumprirmos a vontade de Deos, e a setta dirigese a cumprirmos a vontade propria; o alvo està no Ceo, e a setta vay à terra, e da hy para o inferno. (...) Que serà dos que para tudo o mais olhão: Honras, dignidades, officios, ornamentos, applausos, regalos, dinheiro, e mais dinheiro feliz saude, larga vida, fortuna (...)  E na vida eterna, no seculo futuro, no bem para que fomos creados, e remidos, para aqui, ou não mandamos settas, ou são fracas, que logo cahem sem effeito (...) Ponderese agora, quem poderá disculpar este erro de irem as nossas settas tão fora de hum alvo, tão grande, e tão patente, não podendo ser sem formal malicia, e sem evidente perigo de recahirem as settas sobre nòs mesmos , com ferida incuravel de morte eterna...    

 

Tenho razão de me indignar aqui contra alguns Prègadores deste tempo; porque por obrigação de seu officio lhes compete avisar os fieis deste perigo, com espirito nervoso, e forte, e em fim apostolico: e elles pelo contrario (falo não de todos, mas de muitos) tambem derão em maos frecheiros, que não atirão ao alvo. Frequentemente nas Divinas Escrituras se da aos Pregadores o nome de Sagittarios, ou frecheiros. E qual he o alvo, onde deve atirar hum Prégador, verdadeiramente Prégador? He certo, que o converter almas, ensinando virtudes, reprehendendo vicios, e propondo-lhes o que conduz, para o desprezo do Mundo, abominação do peccado, memoria da morte, imitação de Christo, temor, e amor de Deos nosso Senhor. E aonde vemos nós, que vão ordinariamente parar as suas settas? A mostrarse discreto, erudito, eloquente, agudo, para que o auditorio se deleite, e applauda, e o busque mais vezes, e lhe pague, ou se mostre muy pago do que ouvio. Póde haver tiros mais desencaminhados que estes? Ó tu pecador, que andas cravado há tantos annos no lodaçal profundo de teus viciolos costumes: vem , poemte bem de fronte do pulpito, (como outro Diogenes ao do alvo,) que não hajas medo, que o Prègador te fira, nem toque: não recees, que te fira o coração, nem ainda toque na materia, que podia envergonharte. não vem a que te compunjas, se não a que te admires: não a que velas o que importa no governo da tua consciencia, se não a que louves como discorre no governo do Reino: não traz sentenças graves de Santos Padres, se não equivocos, e trocadilhos, e pitectos Poeticos. Em fim Conversi sunt in arcum pravum, o arco da intenção torceose; como   hão de sahir as settas direitas?...

 

Pois quem torceo este arco? Quem? O diabo, que tudo torce, e destroe, e desencaminha. S. Epiphanio conta, que determinando hum bom Christão por nome Joseph edificar uma igreja, os Judeos com encantos diabolicos lhe atàrão a virtude do fogo, de modo, que não podia cozer os ladrilhos necessarios para as paredes, e bovedas da Igreja. Joseph vendo impiamente impedido o seu zelo de honra Divina, e bem espiritual dos fieis, que fez? Entendendo a causa do mal, desatou a atividade aprisionada daquelle forte elemento, com o sinal da Cruz, e aspersoens de agua benta; e logo o fogo fez seu officio. Applico a historia. O Prégador fazendo o seu officio, edifica a Igreja, que são os fieis. A palavra Divina he fogo: Igitum elequium tuum vehementer, com este fogo se coze, e fortifica o que o nosso barro tem de cru, por parte de filhos de Adam. Que faz o inimigo, para impedir o edificio, ou a edificação? Ata a palavra de Deos. Com que? Com outras palavras, que não são de Deos, se não encantamentos, que fazem prurito nos ouvidos, como dizia o Apostolo, e os desvião, e fazem aversos à verdade. (...) E deste modo bem se ve, que o Prégador não fica edificando, se não encruando mais os ouvintes; se molles, e fracos vinhão, fracos e molles tornão: Porque? Porque não houve fogo, que os cozesse: algumas palavras, que no Sermão ouvirão de Deos, vão encantadas com outras muy contrarias ao espirito de Deos. Por que remedio? Desatar o fogo da palavra de Deos: Verbum Dei non est alligatum. E como se delatão? Endireitando a tenção a servir a Christo, e prégando a Christo, e não a si proprio; a Christo digo, e elle crucuficado; e desejando de veras, que a aspersão de seu Sangue, significada na agua benta, aproveite a todos. Havendo fogo delatado, logo a Igreja se edifica. Mas se assim o não fizerem os Prégadores, já quem torce a nossa intenção, não é só o inimigo, se não elle com nosco, e nós com elle. Oh que castigo nos espera! Ninguem se persuada, que este torcer o nosso officio , carece de peccado... (Tomo IV, V. IV, p. 13-15 ).

 

De Dona Marianna de Velasco, Condessa de Nieva

 

Distribuhia esta illustre, e piedosa Senhora em esmolas, e obras de piedade a mayor parte de sua fazenda. A hum, que lhe quis ir à mão, e estreitar sua liberalidade, disse: << não posso crer, que haja olhos nobres, que vejão necessidades, e as não procurem remediar>> disse bem: Olhos nobres; porque a pessoa esmoler he filiada no livro do Rey do Ceo; pois a esmola feita por amor de Deos, he sinal de predestinação (...) A dignidade do Nobilissimado concedia-se somente aos filhos segundos do Emperador, e a alguns parentes mais chegados. E no Ceremonial da Igreja Grega havia benção particular para os Nobilissimos, quando hião ao templo, e se conferia este titulo solenemente. Como todos os Varoens misericordiosos são filhos segundos do Emperador das alturas, por parte de Christo, que he filho natural de Deos; que muito qué todos sejam Nobilissimos; e haja para elles no dia do Senhor benção particular...

 

Para significar a vaidade da Nobreza mundana, traz um Discreto por symbolo hum jogo de Xadrez, com as suas peças armadas, e por letra lhe ajunta: Non re, sed nomine distant. No nome, e não no ter se differenção. Assim he na verdade; porque no taboleiro deste mundo o serem huns Reys, e outros Roques: huns Delfins, e outros Peoes, não procede da materia, nem da fórma, que em todos he a mesma: procede só da estimação arbitraria dos homens, que differenciou estes nomes, e lugares, e lhes assignou diverso valor no jogo, e da invariavel variedade da fortuna, que ao mesmo lance expoem riquezas, e Nobreza ...

 

E Seneca com Platão trocando as peças do Xadrez entende, que não há Rey, que não descenda de servos, nem servo, que não descenda de Reys; e que os tempos fizeram essa batalha (...) Naõ corre porèm esta filosofia, quando sobre o ouro da Nobreza cahe o esmalte da virtude, e na arvore da ascendencia se acompanha a antiguidade do tronco, e propagação dos ramos, com a fecundidade de santas obras. Já neste caso as peças do jogo, Tum re, tum nomine distant. No nome, e mais mo ter se differenção: O Rey, que exercita acçoens Reaes, não he Rey de Comedia, mas de verdade. O Cavalheiro, que se apeya para acodir ao miseravel, não fica Peão por isso, mas antes mais cavalheiro...

 

Pelo contrario os avarentos, por illustre que seja o seu sangue, elles em si são mecanicos, e escurissimos: e sendo o sangue vehiculo dos espiritos, quem não tiver bons espiritos parecerà, que não tem bom sangue; porque o estado da ascendencia não deveria desmentirse com o curso das acçoens: Os escuros da terra (diz o Psalamita) estão cheyos de casas de maldades. Escuros da terra são os avarentos; assim como os caritativos, e esmoleres são os illustres do Ceo...

 

De S. João Esmoler, Patriarca de Alexandria.

 

Tanto que este Santo Prelado tomou posse, e se assentou na Cadeira do Patriarcado da Alexandria, chamou logo os seus Mordomos, e lhes disse: Naõ é justo tenhamos cuidado de alguem primeiro que Christo: ide pela cidade, e tomay em lista todos os meus Senhores. Duvidando quem eram os Senhores do Patriarca, respondeo o Santo: são os pobres, porque elles me podem dar entrada no Reyno dos Ceos...

 

Se este Santo Patriarca chamava seus Senhores aos pobres, com mais razão chamava o Patriarca S. Francisco à pobreza sua Senhora; porque (...) se no Mundo a riqueza he tão Senhora dos avarentos, que chegão a adoralla; bem se infere, que a pobreza há de ser Senhora dos esmoleres. Por isso David dizia (...) Se tiverdes riquezas, não lhe fometais o coração. Como se dissesse: De modo as possui, que ellas vos não possuão (...) Mas que muito que a pobreza seja Senhora dos Servos de Deos, se o mesmo Deos tomando forma de servo, servio a os pobres, e amou a pobreza. Tanto amou Christo a pobreza, que tudo que lhe tocava neste mundo escolheo pobre: Mãy pobre, Pay putativo pobre, Patria pobre Nazareth, da qual a juizo da Nathanael, nada bom se esperava, e Belem por sentença do Profeta, a minima entre as tribos de Juda: vestidos pobres, manjares pobres, Discipulos pobres: cama para nascer de palhas, para morrer de madeiros, onde lhe faltou huma pouca de agua para matar a sede, e huma pouca de terra para sepultar o corpo; e havendo de ser encravados seus pes Sacratissimos (he pensamento do mesmo Serafico Padre S. Francisco) não quis para elles dous cravos, porque hum bastava para ambos, ainda que à custa de mayor tormento. Assim que se o Senhor dos Senhores com a alma, e com o corpo servio a pobreza; he razão forçosa, que todos os seus servos o sejão tambem da pobreza, e dos pobres...

 

Porem este Santo Prelado chamava aos pobres seus Senhores, não só porque os servia, e amava; senão tambem porque esperava por seu meyo ser admittido no Reyno dos Ceos: que os pobres (como disse um discreto) são os Eleitores do Imperio, com cujos votos entramos na posse daquella immortal Coroa. E se atè do lucro da iniquidade póde provir effeito felicissimo, segundo a sentença de nosso Salvador (...) Quanto mais serà devido à esmola pura, e do proprio? Para termos entrada com Deos, a melhor porta he a da misericordia, que nòs abrimos aos pobres. He digno de reparo que dispensando Salomão tão immensos thesouros na fabrica do templo, e fazendo o Sancta Sanctorum todo forrado de pranchas de ouro macisso, as portas do Oraculo as fizesse de oliveira; como se faltassem os evanos, e os ciprestes ou as aguilas, e calambucos (...) Porèm sabido he vulgarmente, que a oliveira he symbolo da misericordia. Bem dictou logo o Espirito Santo, Arquiteto desta obra, que as portas fossem de oliveira; porque para a casa de Deos não há porta mais franca, que a da misericordia, e caridade, que nòs tivermos com os necessitados. Com que este Santo mandando alistar os pobres a milhares, era o mesmo, que abrir para si de par em par as portas do Ceo...

 

A milhares, digo, de pobres; porque com effeito se matricularão naquella lista sete mil e quinhentos Senhores, e a todos mandava dar o sustento quotidiano. E tanto deu este glorioso Santo, e com tão prompta vontade, que proximo à morte fez o seu testamento nesta forma: João humilde Servo dos Servos de Deos, e só livre pela dignidade Pontifical, e graça de Christo, Graças vos dou meu Deos, e Senhor, que me fizestes digno de vos offerecer o que me destes vòs mesmo: de sorte que de todos os bens do Mundo não me resta mais que a terça parte de hum dinheiro, a qual mando dar tambem a meus Senhores os pobres. Ao entrar no Bispado de Alexandria, achey oito libras de ouro: de offertas pias recolhi mais de dez mil. E conhecendo ser tudo de Christo, a Christo torney tudo, e agora lhe entrego a alma. Atè aqui o Santo, que partia desta vida bem encaminhado pelas portas de Oliveira. E atè os Santos buscão estas para entrar no Ceu, como as escusaremos os peccadores? (Tomo IV, V. IV, p.447-452).