TEIXEIRA, Anísio. Carta a Monteiro Lobato, Bahia,
06 jun. 1945.
Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC
- Arquivo Anísio Teixeira - ATc
28.06.22
Carta publicada no livro Conversa entre amigos: correspondência escolhida
entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural do
Estado da Bahia, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / CPDOC, 1986. p.97-98.
Bahia, 6.6.45
Lobato
Se algum convite já me pôs água na boca, este foi o seu... E olha que já não
tenho apetite para coisa alguma! E a lembrança de também escrever a Emilinha foi das mais eficazes. Tenho, temos uma velha
briga por causa de um cachorro - Rupee - cachorro que
eu acho uma flor e ela... a pior das nuisances ... Com a sua carta, logo decidiu matar o
cachorro e obter a rutura definitiva. Chegou a
redigir resposta telegráfica ao seu cartão: "Matei cachorro segue o
Anísio". Mas nem a morte do meu Rupee me poderá
levar agora a São Paulo. De modo que tratei de dissuadir Emilinha
do seu torvo propósito.
Ninguém melhor do que você pode julgar a minha situação. Muito pouca coisa
funciona no Brasil e no Norte não funciona coisa nenhuma. De comerciante -
horrorizado com essa história de comprar aqui por menos e vender ali por mais -
meti-me a industrial e afundei-me em uma série de minas de manganês. A minha
experiência foi 100% baiana. O problema tinha seus elementos muito claros:
tinha que existir minério, depois tinha que extraí-lo, transportá-lo a gasolina
até a estrada, aí ter transporte até o porto, ter compradores e vapores. Tudo
simplicíssimo: minério, gasolina, transporte ferroviário, porto, comprador,
navio... Pois em cinco anos, só raramente esses elementos coincidiram. Quando
tinha minério, não tinha transporte. Quando tinha transporte, não tinha navio.
E algumas vezes, quando tinha transporte e navio, não tinha minério... Foi um
gangorrear sem fim. E agora - porque resolvi os problemas que me competiam -
sou um homem que tem minério, tem preço e tem comprador, mas que não tem
transporte... Como sou muito Sancho não devo a ninguém, mas estou com um
pesadíssimo negócio nas mãos sem saber como sair... Sou hoje um homem amarrado
a mais de 30 mil toneladas de pedras espalhadas por minas, estações
ferroviárias e dois portos baianos. Como gostaria de "liquidar" tudo
isto e ajudar vocês a fazer livros - coisa, pelo menos, muito mais leve que
manganês. No Brasil tudo é tão tênue que só se deve tentar o leve. Isto do
pesado é o diabo...
E logo agora que o Getúlio pôs o "faz-de-conta" a funcionar e nos deu
essa "liberdade" tão "país-das-maravilhas".
A gente sabe que isso vai desaparecer de uma hora para outra, que basta, como
faria a Emília, fechar os olhos com força, mas que delícia seria conversar um
pouco entre essas fadas: liberdade de pensamento, liberdade de crítica, democracia,
independência individual...
A sua carta, Lobato, ficará aqui a me espetar as
saudades. Racionalmente, não posso sair agora da Bahia. Mas quem disse que
somos racionais? E com todos esses pós de pirlimpimpins
getulianos, não é mesmo que se tem o direito a
algumas maluquices?
Seriamente, precisava de acertar o pensamento com
você. Ando tremendamente gloomy. Leu, por acaso, um
telegrama de Ghandi a Mrs.
Roosevelt por ocasião da morte de seu marido? Era uma coisa assim:
"Condolências pela morte de seu marido. Parabéns porque esse homem de paz
não assistirá o assassinato da paz". The murder of peace... Será mesmo que
os homens a assassinarão pela segunda vez em cinqüenta anos? Este o meu medo,
Lobato, medo tão grande que me anda tirando o gosto de viver. Todas as vitórias
militares da terra só valem, só valeriam se fosse para que a paz vivesse. Todos
nós que vimos e sentimos a catástrofe chegar, imaginamos que os homens
aprenderiam afinal ao tremendo preço dessa catástrofe a "enxergar". E
enxergando, evitassem mais singelamente e mais humanamente o perigo de nova
catástrofe. Pois não é que continuam tão cegos, tão estúpidos, tão estouvados
quanto antes! Estará você vendo melhor as coisas?
Precisava muitíssimo de ir a São Paulo para conversar, para examinar com você
tudo isto. Não será já o começo de uma racionalização para poder viajar?
Lembre-me à d. Purezinha, à Rute, ao Jurandir e Marta e Joyce e creia-me seu muito
saudoso
Anísio