Marcos Faerman*
Câmara Cascudo, considerado um dos maiores folcloristas brasileiros, deixou uma obra extensa e fundamental.
O folclorista e historiador potiguar Luís da
Câmara Cascudo, que completaria 102 anos no último dia 30 de dezembro, escreveu
150 livros, 300 artigos e 1.500 cartas. Esse autor fascinado pela volúpia das
palavras perpetrava frases com a mesma facilidade com que construía amizades
extremadas, como aquela que compartilhou com o escritor, músico e pesquisador
Mário de Andrade. Recebia em sua casa – em Natal (RN), onde nasceu e morreu (em
1986) – os maiores figurões da República, mas os tratava com a mesma simpatia
dispensada aos amigos das ruas boêmias de sua cidade, inclusive algumas moças
nem tão bem faladas pelos chiques e esnobes. Gostava de dar baforadas no melhor
charuto e olhar as crianças brincando, deitado na rede, parindo, quem sabe,
algum novo livro. E para o viajante ou amigo mais impressionável diria, com a
voz entoada: "Não se assombre. Em Natal, eu sou o único pecador
profissional. Os outros são amadores".
Cultivou uma paixão ilimitada pela vida até
quando seus olhos viam menos que penumbras. Na velhice, se distraía com uma TV
em preto-e-branco, presente de seu amigo Assis Chateaubriand. Quando ainda
podia ver, embora não pudesse ouvir, gostava de lutas de boxe, dos jogos do ABC
e do Vasco e – acima de tudo – da Pantera Cor-de-Rosa. Ensimesmado, às vezes
mergulhava em longos silêncios, que sua mulher, dona Dahlia,
dizia que "não eram nada, não: eram uma viagem de Câmara Cascudo a Câmara
Cascudo".
Os retratos de sua juventude esboçam aquarelas
de um moço muito bonito, vestido no rigor da Paris do começo do século,
arrancando suspiros de donzelas – moço lindo e rico, pelo menos em seu tempo de
estudante, primeiro às voltas com a medicina, em Salvador, depois com o
direito, em Recife. "Na juventude", lembra a filha Ana Maria,
"mamãe me disse que ele usava polainas, plastrom.
Era o rapaz mais bem-vestido de Natal, o único a ter um Chevrolet
naquela cidade de 30 mil habitantes. Tinha olhos maravilhosos, e as mulheres o
adoravam. E como ele dançava bem charleston!".
Luís da Câmara Cascudo é considerado um dos
mestres da pesquisa do folclore e da etnografia no Nordeste do país – mas essa
história tem vôos humanos que passam bem ao largo da Academia, como ele sempre
fez questão de dizer. Pelos anos 50, ele explicava que, no começo, não pensava
exatamente no folclore: "O folclore é que se interessou por mim".
Em depoimento ao jornalista Pedro Bloch,
publicado, em 1956, na revista Manchete, Cascudo narra os estímulos iniciais ao
trabalho que o aproximaria de alguns dos expoentes da Semana de Arte Moderna de
1922: "Eu não achava graça no que se escrevia por aqui. Era tudo na base
do 'alto gabarito'. Eu achava graça mais era no trivial cotidiano. Comecei a
fazer rodapés, 'ronda da noite', acompanhava a cavalo a ronda policial e ia
descrever o que via, pileques e prostitutas, brigas e trapaças. O escândalo
maior era ser feito por um menino rico. Depois, vieram naturalmente coisas como
a Festa dos Reis Magos. Tanta coisa que Mário de Andrade não podia compreender.
Pensava que eu tinha sido levado à cultura popular pela erudição. Mentira. A
cultura popular é que me levou a esta."
Mário de Andrade tomou contato com Cascudo por
intermédio do poeta pernambucano Joaquim Inojosa, que
lhe mandou o recorte de um artigo do folclorista. A partir de então tiveram
início a correspondência e amizade entre os dois – registrada em parte no livro
Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo, que abrange o período de
1924 até perto dos anos 40. As missivas foram entremeadas pela passagem de
Mário de Andrade por Natal, mais precisamente pela casa de Câmara Cascudo, fato
que se dá de dezembro de 1928 a janeiro de 1929. Em tal viagem, Mário descobre
o Brasil das danças dramáticas, dos autos que o medievo nos legou, tendo
Cascudo como cicerone.
A gênese do Câmara Cascudo estudioso da
cultura popular está na carta que Mário de Andrade lhe escreve em junho de
1937, instigando-o a mudar a direção de seu trabalho, até então
"caracterizado por biografias de Solano López, conde D'Eu, coisas
assim". Nessa dura carta – que deve ser entendida como um puxão de orelhas
carinhoso, expresso em momentos como aquele em que Mário diz: "Minha
convicção é que você vale muito mais que o que já produziu" –, Mário
critica o trabalho feito por Cascudo até então, que considera ter "dois
erros": o desprezo da medida e a falta de paciência.
Mário atribui o primeiro "erro"
basicamente à escolha de temas já bastante explorados ou desinteressantes. E o
segundo estaria na falta de cuidado e rigor nas pesquisas etnográficas de
Cascudo, que estaria desperdiçando a riquíssima matéria-prima para estudos que
estava diante de seu nariz: "Você tem a riqueza folclórica aí passando na
rua a qualquer hora", escreve Mário. "Faça escritos caídos das bocas
e dos hábitos que você foi buscar na casa, no mocambo, no antro, na festança,
na plantação, no cais, no boteco do povo", completa o escritor paulista.
Mas estudiosos contestam a afirmação de que
Câmara Cascudo só escreveu sobre folclore depois que conheceu Mário de Andrade.
Data de 1921 o artigo O Aboiador, no qual Cascudo
fala do mundo arcaico que resistia nas fazendas de gado do sertão. E a pesquisa
da correspondência entre Mário e Cascudo atesta que o livro Vaqueiros e
Cantadores, embora tenha sido publicado em 1939, começou a ser escrito em 1921.
De qualquer maneira, a parte mais importante de sua obra, incluindo o
Dicionário do Folclore Brasileiro, referência fundamental para qualquer estudo
sobre o assunto, é posterior à famosa carta.
Estudiosos apontam em Cascudo
os talentos de folclorista, memorialista e historiador
Para os estudiosos de Câmara Cascudo, o seu
grande e singular mérito foi o de fazer um vasto trabalho de documentação de microrrealidades ao longo de décadas de ação. Um trabalho
que resultou em vasta colaboração para a reflexão de muitos pensadores
brasileiros.
O memorialista Câmara Cascudo estava sempre
voltado para a evocação de episódios da vida dos sertanejos, homens que viveram
a saga do ermo, do céu pleno de estrelas, das cantorias de aboio e das danças,
do sol sem dó, dos cavalos valentes, das lutas contra onças em grutas escuras,
onde os olhos do bicho brilhavam como tochas. E no fundo da saga o pai, coronel
Francisco Cascudo, oficial do Batalhão de segurança, caçador de cangaceiros,
mais tarde comerciante bem-sucedido e depois empobrecido na cidade de Natal.
É nas páginas do jornal do pai, A Imprensa,
que começa sua incursão nas letras, numa seção chamada "Bric-à-Brac", onde voa de tema a tema e fala tanto de
fofocas literárias européias quanto de assuntos locais, de escritores jovens
que nunca tinham merecido um comentário, uma vírgula sequer nos periódicos
locais.
Por sua vez, o Câmara Cascudo cultor do
folclore está voltado para a tradição. Como diz a professora Vânia Gico, Cascudo "vai se preocupar em recolher contos e
histórias que transcreverá mais do ponto de vista da literatura oral".
Para definir as obras fundamentais de Câmara Cascudo, a estudiosa aponta os quatro
livros que mais entusiasmavam o próprio autor:
• Dicionário do Folclore Brasileiro (Global,
798 págs., R$ 70), de 1954. Foram dez anos de pesquisa, e estava destinado,
inicialmente, a ser uma enciclopédia da cultura brasileira. É uma obra
saborosa, pelas tiradas e achados do autor, que para escrever seus verbetes
contou com uma espécie de "rede de amigos estudiosos", de norte a sul
do Brasil. "É um verdadeiro caleidoscópio de mil temas brasileiros",
criticado por alguns por sua falta de "precisão científica" (dizem
que ele se recusava até a apontar rigorosamente suas referências
bibliográficas).
•
História da Alimentação no Brasil (Itatiaia, 926 págs., R$ 134), 1967. Foi
elaborado com o apoio do jornalista Assis Chateaubriand, que bancou sua viagem
a países da África, onde estudou as raízes de uma parte da culinária brasileira
e a transformação desses pratos ao longo do tempo.
•
Civilização e Cultura (Itatiaia, 741 págs., R$ 65), de 1973. Fornece
informações e notas de etnografia geral, a partir de sua experiência como
professor e pesquisador. Direciona inicialmente seu trabalho, definindo
palavras necessárias à análise dos aspectos por ele indicados, tais como
sistemas de idéias, conhecimentos teóricos, organização social, religiosa e
estética.
•
História dos nossos Gestos (Itatiaia, 260 págs., R$ 30), também de 1973. Narra
a história, o detalhe, a curiosidade e a evolução de 333 gestos comuns ao
dia-a-dia do brasileiro. Ressalta o gesto como elemento essencial de nossa comunicabilidade
não só como indivíduos, mas como nação.
* Marcos Faerman foi repórter
especial da revista Educação até sua morte, em fevereiro de 1999. Este texto
foi extraído da Revista Problemas Brasileiros.
Fonte:
Revista Educação (nº 39)
Maria ISABEL Moura Nascimento. GT: Campos Gerais-UEPG