Durante a Guerra dos Trinta Anos
(1618-1648), que envolveu a Alemanha numa luta religiosa e política, toda a
Europa estava em ebulição. Enquanto cidades eram destruídas e populações
inteiras se empobreciam, o Estado moderno consolidava os seus fundamentos.
Modificava-se toda a escala dos valores consagrados pelo homem renascentista.
Surgia o racionalismo.
Tendo vivido e produzido nesse
período, René Descartes pertenceu a uma época de transição e dela tomou
emprestadas todas as contradições. Descartes nasceu em Touraine, em La Haye, a
31 de março de 1596, de uma família da pequena nobreza. Era o terceiro filho de
Joachim Descartes, deputado no parlamento francês.
(Casa natal)
Menino doente, os médicos
predisseram-lhe uma vida breve; por isso seu pai, temeroso de fatigá-lo com os
estudos, quis retardar sua instrução. Mas o jovem mostrava uma intensa
curiosidade por tudo quanto o cercava. Assim, foi mandado, com a idade de oito
anos, para o colégio jesuíta de La Flèche, aos cuidados de um parente, o Padre
Charlet, reitor do estabelecimento. Este chamava o garoto de "o meu
pequeno filósofo", pela sua grande inclinação para o raciocínio e para a
reflexão. De índole amável e espírito vivo, tornou-se o favorito dos padres. Em
consideração à sua fragilidade física, foi-lhe permitido estudar o que
preferisse e permanecer no leito por toda a manhã, hábito que Descartes
conservou pela existência inteira.
Depois de oito anos, o jovem
deixou o colégio cheio de desconfiança quanto à própria capacidade intelectual.
Abandonou os livros e dedicou-se à prática das armas e à dispendiosa arte de
divertir-se em Paris. Esta fase, porém, durou pouco tempo: quase imediatamente
fez amizade com o erudito Padre Mersenne, que o persuadiu a voltar ao estudo.
Mas Paris não se deixava vencer
facilmente: o vasto círculo de amigos que possuía obrigava-o a muitos
compromissos mundanos. O único modo de libertar-se era empreender a carreira
militar e partir para alguma guerra. Mais seguros os combates com seus riscos e
perigos - pensava Descartes - do que a dissipação e o turbilhão da vida
mundana.
A França estava, então,
dilacerada pelas lutas de partidos. Assim, para encontrar uma guerra
"verdadeira", Descartes precisou alistar-se nas tropas de Maurício de
Nassau (1618), a quem seus conhecimentos matemáticos foram bastante úteis.
Era um soldado estranho, que se
aborrecia com a vida na guarnição. Havia escolhido a carreira militar para
sentir-se livre e, a fim de escapar a todas as exigências do quartel, recusou o
seu soldo. Conservou apenas um dobrão espanhol como recordação desse período.
Aquela época obscura tinha,
também, as suas alegrias; uma delas foi a amizade com Isaac Beckman, diretor do
Colégio de Doordrecht. Conheceram-se por acaso: em um manifesto, Beckman pedia
a solução de um problema, e para Descartes havia sido uma brincadeira
encontrá-la. O diretor admirou o seu talento e Descartes, agradecendo,
dedicou-lhe o Compendium Musicae, no qual tentou, pela primeira vez,
aplicar o raciocínio matemático a um tipo de conhecimento irracional. Era a
primeira manifestação de sua idéia, a aplicação da lógica matemática ao
raciocínio filosófico. Esta obra foi publicada postumamente.
Beckman e Descartes estudaram
juntos a queda dos corpos e chegaram, mesmo, a deduzir a lei que a rege. Fato
surpreendente, Descartes esquecerá este resultado, o que o levará mais tarde a
incidir em erro sobre o mesmo problema.
Em seguida recomeçou as viagens. Estava, então, nas
milícias do Duque Maximiliano, da Baviera; estudava com tamanha intensidade que
foi afetado por um grave esgotamento.
Em 10 de novembro de 1619,
acampou com o exército de Maximiliano em Ulm. A noite, em meio a uma crise mística,
teve a revelação de um método admirável, ao vislumbrar como a física podia ser
reduzida à geometria, e todas as ciências mostravam-se unidas, como por uma
corrente. Descartes iria passar os nove anos seguintes aplicando tal método à
álgebra.
A revelação persuadiu-o a
dedicar-se de corpo e alma ao estudo e à meditação. Realizou a última ação
militar em Praga, após o que disse adeus às armas e viajou para o norte da
Europa.
Retomou à França em 1622, para
entrar na posse da herança paterna. Pouco depois, porém, ausentou-se novamente,
suspeito de pertencer à seita secreta dos Rosacruzes. Descartes desmentiu o
fato e, de resto, parece estranho que um homem como ele, que se esquivava de
qualquer vínculo, tivesse participado daquela entidade.
De 1623 a 1625, esteve na
Itália. Conheceu Loreto, Veneza e Roma. Mas, para o seu temperamento, a cozinha
opulenta, o clima muito quente e as pessoas extrovertidas não representavam uma
escolha feliz. De volta a Paris, tomou várias medidas para defender-se da
intromissão de amigos e admiradores: precisou, efetivamente, manter secreto o
seu endereço durante todo o tempo que dedicava aos estudos.
Não se afastou, entretanto, da
companhia dos homens de ciência; nesta ocasião, as insistências, sobretudo do
Cardeal La Berulle, para que divulgasse a sua filosofia pelo bem da humanidade,
convenceram-no a seguir o que considerava a vontade divina. Decidiu então
isolar-se para escrever suas obras.
(Casa em que morou na Holanda)
Escolheu a Holanda, onde podia ser facilmente informado
das novas idéias dos estudiosos franceses e, ao mesmo tempo, ter tranqüilidade.
Ninguém conhecia a sua residência (que mudava sempre), com exceção do Padre
Mersenne, seu correspondente e informante científico.
Certo dia em Roma, Descartes observou um parélio, isto é,
uma espécie de halo solar produzido por um véu de nuvens peculiares. Este
fenômeno repercutiu em sua imaginação, estimulando-o a dedicar-se aos estudos
sobre sua causa e, em geral, aos estudos de óptica e de física. Daí resultaram
três importantes ensaios intitulados Dioptrique (dióptrica, teoria da
refração), Météors (meteoros, fenômenos atmosféricos e astronômicos
acidentais) e Geometrie (a obra que contém os fundamentos da geometria
analítica, a aplicação da álgebra à geometria).
(No Dióptrica Descartes
apresenta vários desenhos baseados nas leis da reflexão e da
refração, com os quais ele tentava compreender como o olho humano forma as
imagens)
Escreveu os três livros em
seqüência. Mas, antes de publicar o terceiro, percebeu a necessidade de dar a
todo o desenvolvimento uma ordenação lógico-geométrica, de acordo com aquela
idéia vislumbrada em 1619, e já manifestada em outras páginas. Precedeu-o,
portanto, de uma breve introdução, na qual expôs o método adotado e que ele
considerava como aceitável na exposição de qualquer obra científica e
filosófica.
Descartes afirmava que, em
qualquer campo científico, só quando os resultados fossem tão claros,
controláveis e certos como na matemática, seria justificada a afirmação de ser
obtido algum conhecimento. Negou que diferenças nos dados das diversas ciências
devessem necessariamente ditar uma diferença de métodos de abordagem; pois, por
mais diferentes que sejam seus dados, todas elas avançam pelo raciocínio, que
tem o mesmo caráter fundamental, quaisquer que sejam os termos concretos adotados.
A razão é a mesma, em todos os homens; logo, deve haver apenas um método
universal, válido em qualquer pesquisa, em qualquer ramo da ciência. Descartes
pretendia unificar os vários ramos da matemática e, depois, reconstruir e
inter-relacionar as várias ciências não-matemáticas - um projeto que ele mesmo
admitia ser incrivelmente ambicioso.
Surgida
como simples introdução, o Discours de la Méthode pour bien conduire sa
raison à chercher la verité dans les sciences tornou-se a sua obra
mais importante. O livro contém a essência do raciocínio científico: partir de
premissas seguramente verdadeiras; parcelar os raciocínios difíceis ao abordá-los;
evitar omissões ao conduzir raciocínios longos. As últimas afirmações são as da
lógica há muito aceita por cientistas e filósofos; a primeira, ao invés, é uma
afirmação de princípio, absolutamente nova, uma repulsa ao dogmatismo e aos
conhecimentos preconcebidos. Galileu havia afirmado a mesma coisa, mas
limitando o seu campo de aplicação à física. Para Galileu, era interessante
extrair da experimentação os pontos de partida dos raciocínios. Para Descartes,
era importante que estivesse bem claro que, em qualquer tipo de raciocínio, os
postulados de partida são a premissa indispensável para se alcançar deduções
válidas.
A grande contribuição de
Descartes para o futuro da ciência está em sua tentativa de
"geometrizar" toda a natureza. A Geometrie foi o seu grande e
original trabalho neste campo. Seu mérito consistiu basicamente em aplicar a
álgebra ao estudo dos problemas geométricos. Toda figura traçada sobre um plano
é composta de pontos e todo ponto possui uma posição que pode ser descrita por
dois números (as coordenadas), de modo análogo ao da posição de um ponto sobre
a superfície terrestre, dividida por meridianos e paralelos. Toda figura
geométrica pode ser representada por uma equação algébrica e os problemas de
geometria são, portanto, passíveis de resolução por meio da álgebra.
Inversamente, a geometria está
em condições de esclarecer o significado das expressões algébricas. Tal método
de interpretação das fórmulas abrirá caminho ao conceito de função, à criação
do cálculo infinitesimal, e também ao conceito de limite, cuja evolução
pertence ao período seguinte ao cartesiano.
O método geométrico das
coordenadas cartesianas permitiu-lhe realizar muitas descobertas. Sua mente não
se limitou, porém, ao estudo da geometria. Enfrentou estudos como o da teoria
dos números, a parte mais difícil da matemática, na qual foram postos à prova
os maiores expoentes desta ciência (entre os quais Fermat e Pascal, que mais
tarde entrariam em polêmica com Descartes).
A França começava a orgulhar-se
daquele filho brilhante, cuja obra conquistara os espíritos graças à
simplicidade de seus caminhos e destruíra as qualidades ocultas que nutriam a
filosofia escolástica. Luís XIV instituiu-lhe uma pensão, com o objetivo de
persuadi-lo a regressar à pátria.
(Rainha Cristina )
Descartes, porém, tinha outros planos. O embaixador
francês na corte da Suécia, Chanut, havia mencionado o filósofo à Rainha
Cristina. Esta nutria uma grande paixão pela filosofia e desejava aprendê-la
com o grande mestre, de cujas idéias, aliás, compartilhava. Em 1 de setembro de
1649, Descartes abandonou a Holanda pela Suécia, cheio de entusiasmo, como um
missionário zeloso.
Sendo pesados os seus encargos
oficiais, a rainha começava a ocupar-se do governo às 7 horas da manhã;
Descartes era, assim, obrigado a dar-lhe lições a partir das 5 - uma tarefa
ingrata para quem nunca se levantara antes das 11. Numa dessas manhãs pegou um
forte resfriado e, depois de uma semana, a moléstia havia chegado ao ponto para
o qual nenhuma ajuda adiantava: faleceu a 11 de fevereiro de 1650, tendo
passado cerca de quatro meses na Suécia. Seus despojos foram trazidos de volta
para a França e enterrados na Igreja de Sainte-Geneviève-des-Bois, em Paris.
Fonte: www.saladefisica.cjb.net
Maria Isabel Moura Nascimento. GT Campos Gerais-PR-Universidade
Estadual de Ponta Grossa-UEPG
René Descartes
(1596 -
1650)
(1596 -
1650)