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MUNICÍPIO PEDAGÓGICO*

 

Conceituação. O município pedagógico é a entidade administrativa local na qual as autoridades constituídas, avançando para além das dimensões político-administrativas, promovem a educação a uma posição de centralidade para o alcance do desenvolvimento sócio-econômico e para a legitimação do poder. Trata-se de uma categoria ainda em formação, dado seu uso recente, e tem sido identificada no Brasil na segunda metade do século XIX, possibilitada pela existência de uma legislação descentralizadora da gestão do ensino e a extensão da responsabilidade para com a instrução primária aos limites municipais, levando à regulamentação e implementação locais dessa obrigação. Também inclui-se nesse conceito a apropriação que as elites fazem dessa responsabilização, tirando proveito para a concretização de objetivos particulares, relacionados à manutenção da ordem, disseminação de ideologia e delimitação de uma identidade municipal. Deve-se acrescentar que esse movimento é impulsionado, na época, pela crença no poder regenerador da educação e da necessidade de implantação de sistemas escolares para sua implementação.

 

Contexto. Durante o período imperial brasileiro, a partir do Ato Adicional de 1834, a organização da instrução pública de primeiras letras foi delegada às Províncias, que se desincumbiram da missão de forma diferenciada, mas todas com resultados semelhantes: o fracasso. A República recebe uma herança de analfabetismo da população superior a 80%.

         Apesar de um profícuo debate que se havia instaurado principalmente a partir da década de 1870, sobre a necessidade de formação de um sistema nacional de instrução pública, gerido pelo poder central, a República abortará essa possibilidade ao remeter para os Estados, à semelhança do Império, a responsabilidade pela instrução primária. A Constituição de 1891 é omissa quanto ao assunto, deixando aos Estados o dever de organizá-la e fazer chegar ás classes populares as luzes da instrução, promovendo um processo de regeneração do povo brasileiro e formando o cidadão que a nascente república demandava.

         Os Estados, por sua vez, premidos por problemas econômicos ou pelo simples descaso que suas elites votavam às classes populares e seus anseios, seguem, em sua maioria, a trajetória que vinha do Império e mantêm a população distanciada das letras. Além disso, em muitos casos, há uma divisão de responsabilidades com os municípios, com o Estado transferindo parte da sua responsabilidade para o âmbito local, como pode ser visto no artigo 331 da Lei No 41 do estado de Minas Gerais (1892), que “Dá nova organização á instrucção publica do Estado de Minas”[1]:

“A’ designação das cidades, villas e districtos onde tenham de se realizar essas construcções [prédios para escolas primárias] precederá accôrdo com a respectiva camara municipal, que deverá contribuir com a metade da despesa a fazer-se com esse serviço e acquisição da mobilia necessaria a cada escola...”

         Nesse ambiente de descaso nacional e estadual para com a instrução não seria de se estranhar, portanto, a assunção da obrigação para disponibilizar este bem público por parte do município, último na escala de responsabilidades. Mas a historiografia não tem se debruçado sobre a questão com a atenção que a mesma merece, privilegiando os estudos sobre os sistemas estaduais de ensino, descurando de uma diversidade presente nos diferentes esforços despendidos pelos municípios brasileiros no início da República (ou mesmo no período imperial) para responder aos apelos pela instrução popular e que não se resumem à obediência da lei ou das diretrizes estaduais.

         Exemplo desse esforço local pode ser encontrado no município de Uberabinha (Uberlândia a partir de 1929), em Minas Gerais, onde a primeira Câmara Municipal, empossada em 1892, inicia seus trabalhos de estruturação do município pela educação do povo, compondo um verdadeiro plano ou “sistema” municipal de educação. As quatro primeiras leis aprovadas pela edilidade referem-se todas à instrução: Lei n. 1, “Que dispõe sobre instrucção publica”; Lei n. 2, “Que dispõe sobre o regulamento escolar”; Lei n. 3, “Que dispõe sobre as aulas noturnas”; e Lei n. 4, que “Dispõe sobre a divisão das zonas literarias dos districtos da cidade de Uberabinha”[2].

Adicionalmente, deve ser observado que a lei da instrução pública de Uberabinha é anterior em mais de três meses à sua congênere estadual, da mesma forma que o regulamento escolar de Uberabinha vem à luz com mais de um ano de antecedência em relação ao regimento do Estado. Além disso, ainda na década de 1890 Uberabinha dedica-se à reformulação das leis da instrução municipal, por meio da discussão e alteração do regulamento escolar nos anos de 1896 e 1899.

         Este fenômeno tem sido destacado também em Portugal por Justino Pereira de Magalhães que observa a responsabilização crescente da municipalidade portuguesa para com a instrução pública, principalmente após a Revolução Liberal, quando os antigos concelhos têm aumentadas suas prerrogativas: “... constituíram-se como espaços integrados, e as câmaras municipais, directa ou indirectamente, passaram a interferir em todos os domínios da vida pública, com grande incidência no fomento da instrução pública”[3].

Durante o período da reforma descentralizadora de Rodrigues Sampaio (1878), a responsabilidade pela abertura de escolas, seleção de professores, organização dos horários, etc é transferida para o âmbito municipal, que se desincumbe com o auxílio de uma entidade auxiliar, a Junta Escolar, criada por essa mesma reforma. Este processo não atende apenas aos interesses do poder central em se desobrigar, entre outras coisas, do custo da instrução, mas ao próprio município também se torna interessante ocupar esse espaço, na medida em que o mesmo pode auxiliar no processo de formação de sua identidade. Assim como procurava-se, no nível macro, a formação da nacionalidade portuguesa pela via da educação, o município também a isto aspira e o poderá fazer pelo mesmo caminho. Na observação de Justino Magalhães: “As autoridades do poder local dispõem de uma grande oportunidade para formarem e politizarem os seus cidadãos e as elites locais não a desprezaram. A integração municipal encontra na instrução pública uma nova oportunidade e um factor de construção de identidade”[4].


         Essa preocupação local com a educação permite-nos apreender uma dimensão importante da esfera municipal, como território pedagógico e não apenas político-administrativo, na segunda metade do século XIX, mas que pode ter se estendido pelo Século XX, dependendo das condições especiais de cada estado ou município. No caso do Brasil, como neste período o predomínio das oligarquias locais é massivo, podemos depreender também que a manipulação da instrução com fins político-ideológicos era comum e que as elites da época fizeram uso da abertura de escolas para garantirem a manutenção do poder que empalmaram. Se as escolas eram o espaço que permitia a regeneração e a salvação pelo conhecimento, os construtores/doadores de escolas apareceriam como beneméritos, legitimando o controle que mantinham sobre seus redutos político-eleitorais.

 

Indicações de leituras:

GONÇALVES NETO, Wenceslau. “Organização do ensino público no final do século XIX: o processo legislativo em Uberabinha, MG”. Cadernos de História da Educação. Uberlândia (MG): EDUFU, n. 2, 2004, p. 59-66.

GONÇALVES NETO, Wenceslau. “História e memória da educação: a organização do sistema escolar em Uberabinha, MG, no final do século XIX”. Revista História da Educação. Pelotas (RS): UFPel/ASPHE, vol. 9, n. 17, pp. 137-156, abr. 2005.

GONÇALVES NETO, W. & CARVALHO, C. H. O nascimento da educação republicana: princípios educacionais nos regulamentos de Minas Gerais e Uberabinha (MG) no final do século XIX”. In GATTI JR., D. & INÁCIO FILHO, G. (org.). História da educação em perspectiva: Ensino, pesquisa, produção e novas investigações. Campinas (SP)/Uberlândia (MG): Autores Associados/EDUFU, 2005, p. 263-294.

GONÇALVES NETO, W. & CARVALHO, C. H. “O município pedagógico: proposta de uma nova categoria para a compreensão da história da educação brasileira no final do século XIX”. Anais, V Jornada do HISTEDBR – “História, Sociedade e Educação no Brasil”, Sorocaba, SP, UNISO, 9 a 12 de maio de 2005,16 p. (CD-ROM).

MAGALHÃES, Justino Pereira de. Apontamentos para a história da instrução pública em Braga: as actas da Junta Escolar (1881-1892). Braga (Portugal), Bracara Augusta, Vol XLIV, 1993, p. 145-165 (separata).

MAGALHÃES, Justino Pereira de. A construção de um município pedagógico – o caso de Vimioso. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2004 (mimeo).

 



* Wenceslau Gonçalves Neto. Doutor em História pela FFLCH da Universidade de São Paulo. Professor do Instituto de História e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e História da Universidade Federal de Uberlândia. Email: wenceslau@ufu.br.

[1] MINAS GERAIS. Collecção das Leis e Decretos do Estado de Minas Geraes em 1892. Ouro Preto: Imprensa Official de Minas Geraes, 1893.

[2] CAMARA Municipal de S. Pedro de Uberabinha. Leis, Decretos, Regulamentos. Uberabinha, 1892, Livro 1 (Arquivo Público Municipal de Uberlândia-MG).

[3] MAGALHÃES, Justino. A construção de um município pedagógico – o caso de Vimioso. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2004, p. 4.

[4] MAGALHÃES, Justino Pereira de. A construção de um município pedagógico – o caso de Vimioso, p. 5.

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