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MORALIDADE PÚBLICA[1] /

PEDAGOGIA DA MORALIDADE

 

O conceito de moralidade pública tem sua historicidade e varia de acordo com os princípios e valores de uma determinada época, do grau de participação dos indivíduos na sociedade e da direção política. Hoje ele é usado como sinônimo de ética.

Segundo Japiassú, a moral tem um sentido “mais estrito e diz respeito aos costumes, valores e normas especificas de uma sociedade, ou cultura, enquanto que a ética considera a ação humana do seu ponto de vista valorativo e normativo”. (1991, p. 172). Já para Brugger moral, ou moralidade “é o comportamento do homem, baseado na livre decisão perante a lei moral. Às leis da moralidade vêm acrescentar-se as regras do costume (uso, convenção), as quais se aplicam os preceitos da moralidade a determinadas situações atuais, (...). (1969, p 279-80).  

Hoje vivemos uma grave crise moral, ou ética, principalmente na esfera pública. Todo dia ouvimos notícias sobre corrupção, desvio de recursos públicos, negociatas, acordos políticos e econômicos para beneficiar certos grupos. Por isso nos tempos atuais é mais correto, ou usual falarmos de uma crise da ética pública.

No entanto, no século XIX a moralidade publica abarcava questões, que nos dias atuais não são considerados como imorais e não representa uma afronta a ordem pública.

A questão da moralidade pública passou a ganhar relevância no Brasil do século XIX, quando a estrutura de poder foi abalada, devido à abdicação de Dom Pedro I em favor de uma criança de cinco anos. A regência foi instituída, mas os conflitos e as disputas pelo poder instauram-se por todo o Império. Valores como ordem, respeito à autoridade, a igreja e a própria Pátria foram ignorados e esquecidos por uma grande parcela da população no período, que vai da abdicação de D. Pedro I até o final da década de 1840. Momento turbulento, no qual intensos conflitos foram travados visando à conquista do poder político entre liberais e conservadores.

Na disputa pelo poder, o grupo conservador saiu-se vitorioso e conquistou a hegemonia política. A direção conservadora percebeu que muitos valores precisavam ser recuperados, relembrados, ou reaprendidos pelo conjunto da sociedade, por isso, todo um processo pedagógico foi posto em prática visando restabelecer aqueles princípios e difundi-los para as novas gerações. Deste modo, é possível afirmar que a Pedagogia da Moralidade ocupou um papel central na constituição, difusão e ampliação de determinados valores e práticas sociais, que acabaram contribuindo para a constituição de uma sociedade hierarquizada e centralizada.   

Segundo Adorno, a questão da moralidade demarca claramente a utilização dos instrumentos de força e consenso, e parece “deslindar o segredo das relações de poder entre as classes sociais naquela sociedade”. Englobando, também, o controle da criminalidade, da prostituição, da loucura, a ação política visava, além disso, “disciplinar os contatos, estabelecer regras de sociabilidade e de permuta de experiências, sanear as zonas de circulação, prevenir focos ‘patológicos’ de agrupamento populacional” e, sobretudo, “hierarquizar a proximidade e distância entre pessoas, famílias, grupos e classes sociais”. (ADORNO, 1988, p. 243). A moralidade pública passou então a ser uma espécie de ideologia difundida pelo grupo dominante com o objetivo de fortalecer suas ações. Nesse sentido, os espaços da casa e da rua deveriam ser submetidos à direção do Estado.

A moralidade pública era ameaçada toda a vez que a autoridade do Estado fosse questionada. O Estado era a autoridade, portanto, o responsável pela ordem pública. Mas quem era o Estado, além do Imperador, topo da hierarquia? Estado era todo o complexo dos agentes da administração. Deste modo, qualquer pessoa que entrasse em choque com um desses indivíduos, estaria afrontando a autoridade, ou seja, seria uma questão de desrespeito à moral pública, e como tal deveria ser combatido pelos defensores da ordem. Ser moral era ser ordeiro, respeitar a hierarquia, aceitar a autoridade, saber qual era seu espaço na sociedade, e, sobretudo, ser católico.

Como afirma Gramsci: toda a relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica, mas como tal, não pode se limitar às práticas escolares, à relação professor-aluno. Ela é muito mais ampla, implica num processo de direção político-social, e está diretamente vinculada às ações humanas ao longo da história. A conquista da hegemonia pelo grupo conservador no século XIX foi possível graças à ação consistente do núcleo produtor de idéias/valores, e dos mecanismos utilizados para a difusão no conjunto da sociedade.

Nesse sentido, entendo que a pedagogia da moralidade ocupou um lugar de destaque na viabilização e implantação do projeto conservador para a sociedade e o Estado nos tempos do Império. O discurso da moralidade pública permite compreender porque o êxito da ação visando à hegemonia só foi assegurado quando os conservadores desenvolveram a pedagogia adequada aos fins que se propuseram a atingir. Através dele combatiam-se os crimes do cotidiano (assassinatos, prostituição, roubos), as rebeliões ou motins dos escravos e livres pobres, as revoltas liberais, as reivindicações populares, a liberdade de imprensa, enfim, qualquer ação individual ou coletiva que atentasse contra a ordem do Império.

Os professores, como centro desse processo/projeto, estavam submetidos a rígidas formas de controle, através das visitas, inspeções, mapas, grau de religiosidade, de moralidade, tomados como referência pelos inspetores para verificar a coerência e competência dos mesmos. Eles deveriam servir de espelho para seus alunos. Nesse sentido, entende-se a maior preocupação com o seu trabalho, do que com o conhecimento de conteúdos. Eram instrumentos fundamentais dentro do projeto conservador de ordem e civilização, ocupando o papel de difusores e multiplicadores daqueles valores, por isso precisavam ser vigiados de perto. Um controle eficiente dos professores garantiria, também, um domínio sobre os alunos, que conviviam diariamente numa relação hierárquica na sala de aula.

Os agentes da administração (chefes de policia, juizes, inspetores de instrução publica, etc), ao desempenharem suas funções na administração estatal, mostravam-se extremamente preocupados com a questão da moralidade, especialmente à frente da instrução pública. A preocupação com o caráter moral dos professores vinha ao encontro das ações políticas colocadas em prática pelo grupo conservador na administração do Estado. Um controle eficiente e efetivo do trabalho dos professores garantiria uma difusão e ampliação daquele modelo de sociedade. Eram os olhos do soberano que estavam por toda à parte, agindo nos espaços sociais, fiscalizando e controlando os indivíduos. Nesse sentido, todo um aparato legal foi elaborado, através dos regulamentos de instrução pública, nos quais os inspetores foram imbuídos de um poder quase absoluto. É nesse sentido que havia uma Pedagogia da Moralidade, onde os membros de rede administrativa, (que não se restringia ao funcionalismo) e do poder de convencimento, advindo da sua clareza política e do compromisso com o projeto conservador, difundiam novas práticas e novos valores para o conjunto da sociedade.

O campo da instrução pública teve um papel destacado no processo de difusão da pedagogia da moralidade. A escola tinha e tem como objetivos formar e educar os indivíduos para ocupar seu lugar na sociedade: é, portanto, uma instituição fundamental da produção/reprodução social. Inserida numa sociedade hierarquizada, restou a ela reproduzir no seu interior o conjunto dessas relações e, por extensão, devolver à mesma sociedade indivíduos que reproduziram esses valores nas suas práticas quotidianas. (Mas não podemos esquecer que a escola é um espaço de contradição).

No século XIX, a moralidade pública estava mais relacionada ao espaço político, a luta pelo poder. Qualquer mobilização individual, ou coletiva contra o poder constituído era uma afronta a moral pública. Hoje vivemos uma democracia, temos  liberdade de imprensa, grupos sociais organizados, participação popular, felizmente avançamos na conquista dos direitos individuais e coletivos, mas temos muito a caminhar. Ainda, os temas da ética e da moral são bandeiras de luta. No novecentos, que afrontava a moral publica estava majoritariamente fora da administração e do poder, na atualidade a falta de ética e moralidade pública está concentrada entre os que exercem o poder. Só com a organização e a mobilização social é que vamos construir uma sociedade, onde a ética e a moral sejam à base da organização da sociedade.

 

Referencias Historiograficas

 

ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

BRUGGER, Walter. Dicionário de filosofia. 2 ed. atual. São Paulo: Herder, 1969.

CASTANHA, André Paulo. Pedagogia da Moralidade: o estado e a organização da instrução pública na província do Mato Grosso, 1834 - 1873. Cuiabá: Instituto de Educação / UFMT, 1999. (Dissertação de Mestrado).

GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a organização da cultura. 9 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

JAPIASSÚ, H. e MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 2 ed. ver. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.

MATTOS, Ilmar Rohloff de O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1990.

 



 



[1] Verbete elaborado por André Paulo Castanha

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