MARIA DE LOURDES PINTO DE ALMEIDA[1]
O conhecimento
científico desde a sua origem tem se marcado por uma constante busca do rigor
na compreensão da realidade. Tal rigor visa, sobretudo um autocontrole
fundamentado em critérios de validade que, ao mesmo tempo, objetiva dar a ciência
parâmetros para sua avaliação, permitindo também demarcar o seu espaço
enquanto tal. Nesse sentido, a ciência caracteriza-se sempre pela referência
ao seu outro, a não ciência. A
discussão em torno do estatuto da história exige algumas considerações
gerais em torno do regimento da ciência em geral.
Uma análise do desenvolvimento da ciência nos mostra a sua
historicidade, pois os seus critérios têm se transformado, sofrendo
incrementos conforme as vicissitudes. A História em sua afirmação enquanto ciência
também apresenta os efeitos da historicidade. A historicidade caracteriza-se
enquanto determinações decorrentes da interação dos elementos que compõem a
realidade humana numa determinada época.
Na configuração
de uma época alguns elementos se preponderam. Nesse sentido, é que dizemos que
as relações de produção, a materialidade dos elementos determinantes da vida
dos homens, que os distribuem conforme os “lugares” ou espaços
sociais de um dado modo de produção, engendram certas práticas sociais que
devem ser compreendidas a partir do conjunto das determinações, quer dizer do
concreto. Por mais
determinista que semelhante terminologia possa ser interpretada, ela faz parte
também de um ideário “humanista” calcado em determinados valores que tem
apresentados como parâmetros para se julgar as ações caracterizadas como históricas
e, ainda, para orientar planos de ação.
A ciência, sendo
um produto da ação humana, marca-se por semelhante especificidade. Assim,
alguns critérios têm surgido e desaparecido, outros prevalecem desde os
projetos “epistemológicos” dos antigos gregos. Que os critérios, os valores, são humanos ninguém o
nega. No entanto, deduzir que disso decorreria um total relativismo, ceticismo
ou “anarquismo” (axiológico e epistemológico) seria radicalizar ao extremo
o próprio principio da historicidade, que submete tudo as determinações
temporais. Se os homens substituem seus critérios é por que o fazem em vista
de um outro julgado melhor. O
melhor já supõe um sentido que pode ser dado por vários critérios seja de
utilidade, de “instrumentalidade”, de operacionalidade, coerência lógica
ou de conformidade com a experiência, etc. Essa possibilidade de criar, recriar
ou aperfeiçoar critérios revelam a atividade de um sujeito atuante, capaz de
agir, conhecer e determinar parâmetros para suas preferências.
É em função do
estabelecimento dos critérios para julgar suas práticas - para justificá-las,
refutá-las ou transformá-las - é que se travam os embates ideológicos.
Disputas fundadas em “última instância” na defesa de interesses econômicos,
determinados pelas correlações contrárias e contraditórias de “forças”
num determinado ordenamento de um modo de produção. Querer negar esse suposto
equivale a aceitar como absolutas, peremptórias, as formas de organização
social do momento. Como se o homem devesse renegar a sua capacidade de dar
sentido, de “projetar”, o que significa no vocabulário marxista, o intento
de buscar superar contradições nos mais diversos níveis da atividade humana
(coletiva). Negar as contradições
ou negar que elas possam ser superadas já supõe um compromisso com um lado,
portanto um interesse de classe, uma vez que as relações entre o trabalho e a
propriedade (no caso atual o capital), conforme um critério mais universal de
compreensão da realidade humana, revela uma sociedade dilacerada pelos
antagonismos de classe. Esse critério
de compreensão da realidade humana pode muito bem ser aquele proposto por E.
Kant: nunca tratar o homem como meio, mas
sempre como fim em si mesmo.
Trata-se de um
critério em torno do qual todo debate deve começar e deve se encerrar.
No entanto, deve ir além de Kant no que se refere ao formalismo ou
substancialismo da concepção de natureza humana. O homem é resultante de relações
sociais no interior de um sistema cujas coordenadas são dadas pelos fatores
econômicos. É, desse modo, como membro de uma sociedade, e não formalmente,
que o homem deve ser visto como fim. Por
isso todo plano de transformação da realidade humana possui uma dimensão
coletiva, libertária. O eixo fundamental de definição de humanidade é a idéia
de igualdade, não só formal e jurídica, mas, sobretudo de condições de
acesso aos benefícios conquistados pela humanidade.
Tudo isso é impensável sem a discussão de novas formas de relação
entre trabalho e propriedade quer a nível intelectual ou material[2].
A definição de
ciência como atividade humana exige que se a compreenda enquanto superestrutura
determinada por condições mais fundamentais, as econômicas.
Sendo essas determinadas pela práxis social dos homens, que lutam pela
manutenção dos interesses econômicos antagônicos que os dividem em
opressores e oprimidos, dominantes e dominados (termos que os cientistas sociais
de certas linhagens ideológicas negam-se a exprimir ou os exprimi com certa
“vergonha” por sua suposta falta de rigor, isto é de objetividade e
imparcialidade, no entanto basta olharmos ao redor para percebemos a pertinência
significativa dos mesmos) movem a história, até quando propõe o fim da mesma.
A história resulta da ação dos homens que, conforme a idéia de práxis,
atuam no “interior” de estruturas que são ao mesmo tempo determinantes e
determinadas. Tal como a negação
da filosofia exige o filosofar, a negação da História - como movimento dialético
de produtor/produto, indivíduo/sociedade, infra-estrutura/super estrutura, e ciência/objeto-supõe
compromissos históricos de classe. Os
mesmos interesses ideológicos que explicariam a recusa do se pensar e buscar
meios de superar a “transformação do homem” - trabalhador ou despossuído
dos meios de produção, do capital - em mercadoria no interior das relações
capitalistas, poderiam ser associados aos escusos interesses daqueles que propõem
ou aceitam a transformação da ciência em peça do mesmo gênero.
*
[1] Pedagoga, mestre e doutoranda em História da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.
[2] A crítica que Marx faz aos economistas do século XVIII dirige-se também aos filósofos. “Os profetas do século XVIII, sobre cujos ombros se apóiam inteiramente Smith e Ricardo, imaginam este indivíduo do século XVIII (...) um ideal, que teria existido no passado. Veêm-no não como resultado histórico, mas como ponto de partida da História, porque o conspiravam como um indivíduo conforme a natureza - dentro da representação que tinham de natureza humana - que não se originou historicamente, mas foi posto como tal pela natureza. Esta ilusão tem sido partilhada por todas as novas épocas, até o presente”. In Para Crítica da economia política, Editora Nova cultural, p.03/04”.