RESENHA CRÍTICA: A IV Conferência Nacional de Educação (1931): os embates da Escola Nova

 

A obra “A Revolução e a Educação”, de Nóbrega da Cunha, publicada em 1932 e sintomaticamente prefaciada por Fernando de Azevedo, é indubitavelmente um documento histórico. Não por cumprir com perfeição sua intenção de ser referência para compreensão dos fatos da IV Conferência Nacional de Educação – coisa que não faz – mas sim por trazer consigo algumas flagrantes imperfeições: parcialidade e seleção arbitrária de discursos e documentos. Isto porque estas características possibilitam a presença constante de um ponto de vista através do qual pode-se ouvir a voz e conhecer os interesses e ambições de determinado grupo.

Este grupo é o dos defensores da corrente pedagógica denominada Escola Nova, que traziam para o Brasil as teorias de Dewey, Montessori, Decroly e outros. No contexto pos-revolucionário da época, os pioneiros tinham fortes razões para acreditar que a adoção dos princípios pedagógicos professados pela Escola Nova seria o antídoto definitivo para os problemas educacionais brasileiros. Tal crença era justificada pelo discurso típico de quem faz uma revolução (ou julga estar fazendo): uma vez que estruturas ultrapassadas e ineficientes estão desaparecendo, é preciso criar instituições que representem e instaurem os novos tempos. De acordo com este raciocínio, a Escola Nova seria a portadora dos valores de renovação tão necessários a um país que sequer tinha uma política educacional definida e um sistema de instrução organizado.

A adoção deste ponto de vista pode ser percebida ao longo de toda a obra, em especial nas considerações iniciais do autor: este incumbe-se da tarefa de, com sua produção, abrir os olhos das autoridades para a atual situação da educação no país, bem como para o perigo de velhos princípios pedagógicos mantenham-se vigentes numa época que pede inovação.

Dito isto, Nóbrega da Cunha passa a relatar o que virá a ser o fio condutor de sua obra e grande indicador da pertinência das considerações dos pioneiros e da  introdução da Escola Nova no país: os discursos de Francisco Campos, Ministro da Educação, e de Getúlio Vargas, Chefe do Governo Provisório. O primeiro afirma que espera um esforço no sentido de definir o que vem a ser educação, pois há uma conceituação dissensual em torno do tema e uma prática que não é orientada por uma teoria. Ao final, Campos pergunta que tipo de homem se quer formar. Vargas, por sua vez, complementa o discurso anterior desejando que se encontre “a forma mais feliz” de educar os brasileiros.

A questão de Francisco Campos é o elemento disparador de um movimento  que pode ser considerado uma verdadeira cruzada na busca de mais poder político por parte dos pioneiros: Cunha dedica grande parte de sua obra a descrever pormenorizadamente as passagens da Conferência nas quais tenta fazer seus colegas perceberem a relevância da pergunta do Ministro, repetindo-a à exaustão em todos os seus discursos e afirmando que a atenção a tal questão modificaria profundamente os rumos da Conferência. Face à pouca receptividade de suas palavras na Assembléia e à sugestão do presidente desta para que Cunha levasse o tema à Comissão Especial a fim de que fosse incluído nas pautas da próxima Conferência, o autor passa a discorrer sobre a importância de sua tão honrosa incumbência e chega a considerar-se mesmo porta-voz do Governo Provisório. É preciso ainda dizer que, a todo momento, Cunha diz perceber que a Conferência não está apta a cumprir o dever de discutir sobre os princípios da educação brasileira e definir a política educacional a ser adotada, frustrando as expectativas de todos os que acompanhavam os debates.

Durante toda a exposição deste recorte preciso dos acontecimentos da Assembléia o autor, mesmo que de forma polida e no mais das vezes implícita, deixa clara a sua posição, qual seja: a Conferência é, pela pequenez e restrições de suas teses, um dispositivo ineficaz para propor as soluções de que a educação brasileira tanto necessita, e a prova cabal deste despreparo é a pouca atenção dada à importante pergunta formulada pelo Ministro da Educação. Tal importância, por sua vez, justifica o requerimento para que a pergunta seja feita tema da próxima Conferência.

Na verdade, tais considerações podem ser interpretadas como o trajeto de um grupo na busca por poder: o presumível pouco espaço dos pioneiros na Conferência torna interessante que esta seja retratada como uma verdadeira perda de tempo. Além disso, a possibilidade de que haja uma ocasião em que a pergunta de Francisco Campos possa ser respondida parece interessar tanto aos defensores da Escola Nova porque estes, enquanto intelectuais, teriam várias e precisas considerações a fazer, podendo então conquistar maior poder decisório no processo de formulação das políticas educacionais brasileiras. Um elemento que apoia esta interpretação é a passagem de “A Revolução...” em que Nóbrega da Cunha transfere a suprema liderança da nova educação no Brasil a Fernando de Azevedo e outorga-lhe a sistematização da ideologia dos pioneiros na forma de um manifesto, o qual deveria apontar os rumos para a nova política educacional. O comentário da atitude do autor é, inclusive, o tema do prefácio do novo líder do movimento da Escola Nova no Brasil.

Na parte dedicada às conclusões da Conferência propriamente dita, Cunha reproduz na íntegra o texto do Convênio firmado entre a União e os Estados para a produção de uma estatística educacional uniformizada. Tal convênio constituía o principal ponto da pauta da Conferência, e a leitura de seus tópicos permite concluir que a ambição geral era a de confeccionar um levantamento anual minucioso sobre os  aspectos administrativo, financeiro, espacial, material, docente, discente e didático envolvidos na educação brasileira, iniciativa que parece ter sido aprovada por todos os grupos envolvidos na Conferência.

Além disso, o autor dedica atenção às conclusões dos relatores de cada um dos outros temas discutidos pela Assembléia (excetuando aqueles relacionados à produção do Convênio), a saber: As Grandes Diretrizes da Educação Popular; A União e o Ensino Primário; Ensino Profissional e Ensino Normal. Através da reprodução dos documentos é possível perceber que todos eles estão permeados por mais perguntas do que respostas, pelo reconhecimento da precariedade do sistema educacional brasileiro da época e pela esperança de que a Constituição vindoura resolvesse todas as deficiências e dirimisse todas as dúvidas.

Como dito no início, não é esta coletânea seletiva de documentos que faz de “A Revolução e a Educação” um documento histórico, mas sim seu status de História do presente pos-revolucionário, o que por definição carateriza esta obra como um retrato vivo do Zeitgeist, dando a ver as indefinições, as expectativas, as certezas que mais tarde sabemos terem sido vãs, os embates de diversos grupos pelo poder e, em última instância, a possibilidade de contabilizar as permanências da ideologia educacional da época nos dias de hoje.