EDUCAÇÃO NO
BRASIL: CONCEPÇÃO E DESAFIOS PARA O SÉCULO XXI
Dermeval Saviani
O problema das concepções de educação pode ser abordado de
diferentes maneiras. Um enfoque possível é a partir da
filosofia identificando-se, em conseqüência, as principais
concepções de educação expressas nas grandes tendências que
se manifestaram ao longo da história. Nessa linha de análise
poderíamos chegar às diversas concepções de filosofia da
educação considerando também as correntes filosóficas a elas
articuladas. Outra forma de abordagem seria levar em conta o
aspecto propriamente pedagógico o que nos conduziria a
identificar as principais correntes pedagógicas como o
escolanovismo, o não-diretivismo, o construtivismo, o
behaviorismo, etc. Uma outra maneira seria considerar a
educação a partir da função social desempenhada nas
diferentes sociedades ao longo do tempo. Nesse caso a educação
seria concebida como um processo de inculturação ou
aculturação das novas gerações nas tradições e nos costumes
característicos de uma formação social determinada. Nesse
âmbito emergiriam, como assinalou Durkheim, os papeis de
homogeneização e diferenciação requeridos de seus membros por
parte da sociedade.
No entanto, para efeitos desta exposição no âmbito dessa
Conferência Nacional de Educação, Cultura e Desporto, não vou
seguir nenhum dos caminhos acima apontados. Vou procurar me ater
aos objetivos desse evento que, inspirado em Anísio Teixeira e
pretendendo ser dominantemente propositivo, nos convida a buscar
alternativas concretas, em especial no âmbito da legislação,
de modo a delinear com a clareza que se revelar possível, a
concepção e as medidas dela decorrentes exigidas para se
enfrentar os desafios que se põem para a educação brasileira
neste limiar do século XXI.
1. Concepção de educação
O entendimento dos problemas enfrentados pela educação
brasileira atualmente implica a compreensão da forma assumida
pela educação no contexto das sociedades modernas.
Caracterizadas pelo predomínio da cidade e da indústria sobre o
campo e a agricultura, essas sociedades se constituíram sob a
forma do direito positivo regendo-se por constituições escritas
e generalizando relações formalizadas através de contratos
cujo teor se manifestava também por escrito e cuja adesão se
dava através da assinatura que expressava a concordância ,
após sua leitura, com o conteúdo das cláusulas do contrato.
Incorporava-se, assim, à vida social a expressão escrita. Em
conseqüência, para participar ativamente desse tipo de
sociedade nas diversas e múltiplas funções por ela
desenvolvidas, se faz necessário o ingresso na cultura letrada.
Ora, sendo essa forma de cultura um processo formalizado,
sistemático, só pode ser atingida através de um processo
educativo também sistemático. Portanto, a sociedade moderna
não podia mais se satisfazer com uma educação difusa,
assistemática e espontânea, passando a requerer uma educação
organizada de forma sistemática e deliberada, isto é,
institucionalizada o que veio a colocar a educação escolar como
a forma principal e dominante de educação.
No contexto descrito o acesso à escola passa a ser considerado
como um direito de todo cidadão e, como tal, um dever do Estado.
O cumprimento desse dever assume, no final do século XIX, a
forma da organização dos sistemas nacionais de ensino,
entendidos como amplas redes de escolas articuladas vertical e
horizontalmente tendo como função garantir a toda a população
dos respectivos países o acesso à cultura letrada traduzido na
erradicação do analfabetismo através da universalização da
escola primária considerada, por isso mesmo, de freqüência
obrigatória.
Os principais países, não apenas da Europa mas também da
América Latina, como se pode ver pelo exemplo de nossos
vizinhos, a Argentina, o Chile e o Uruguai, tendo organizado os
seus sistemas nacionais de ensino a partir do final do século
XIX, lograram universalizar o ensino elementar e, com isso,
erradicar o analfabetismo. O Brasil não fez isso. Após uma
tentativa fracassada por ocasião da Constituinte de 1823 e,
depois, com a lei das escolas de primeiras letras de 1827,
relegou-se a educação básica durante todo o Império e ao
longo da Primeira República às Províncias e, depois, aos
Estados federados, desobrigando-se desse dever o Estado Nacional.
Foi somente após a Revolução de 1930 que a educação no
Brasil começou a ser tratada como uma questão nacional dando-se
precedência, porém, ao ensino secundário e superior já que
foi só em 1946 que viemos a ter uma lei nacional relativa ao
ensino primário. E, ainda assim, o trato da questão educacional
foi sempre, entre nós, atravessado por um dualismo
desqualificador da instrução popular em confronto com aquela
destinada às elites. Com efeito, as reformas Capanema da década
de 1940 foram marcadas pela contraposição entre ensino
secundário destinado às elites condutoras e ensino profissional
voltado para o povo conduzido. Procurou-se corrigir essa
distorção através das leis de equivalência entre os vários
ramos do ensino médio na década de 1950, equivalência essa que
foi incorporada à nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional promulgada em 1961. E a Lei 5692 de 11 de
agosto de 1971, ao justificar a tentativa de universalização
compulsória da profissionalização no ensino de segundo grau,
trouxe à baila o slogan "ensino secundário para os nossos
filhos e ensino profissional para os filhos dos outros" com
o qual se procurava criticar o dualismo anterior sugerindo que as
elites reservavam para si o ensino preparatório para ingresso no
nível superior, relegando a população ao ensino profissional
destinado ao exercício de funções subalternas.
Deve-se notar, porém, que essa mesma lei 5.692 introduziu a
distinção entre terminalidade ideal ou legal, que corresponde
à escolaridade completa de primeiro e segundo graus com a
duração de onze anos, e terminalidade real, a qual implicava a
antecipação da formação profissional de modo a garantir que
todos, mesmo aqueles que não chegassem ao segundo grau ou não
completassem o primeiro grau, saíssem da escola com algum
preparo profissional para ingressar no mercado de trabalho.
Admitiu-se, pois, que nas regiões menos desenvolvidas, nas
escolas mais carentes, portanto, para a população de um modo
geral, a terminalidade real resultaria abaixo da legal, isto é,
chegaria até os dez anos de escolaridade ou oito, sete, seis ou
mesmo quatro anos correspondentes ao antigo curso primário
devendo receber, mesmo nesses casos, algum preparo profissional
para daí passar diretamente ao mercado de trabalho. Ora,
através desse mecanismo a diferenciação e o tratamento
desigual foram mantidos no próprio texto da lei, apenas
convertendo o slogan anterior neste outro: "terminalidade
legal para os nossos filhos e terminalidade real para os filhos
dos outros".
Observe-se, finalmente, que o referido dualismo se faz presente
também na política educacional atual não apenas quando, na
reforma do ensino médio, se separa o ensino técnico do ensino
médio de caráter geral e quando se advoga no ensino superior os
centros de excelência destinados a ministrar às elites um
ensino de qualidade articulado com a pesquisa em contraste com as
instituições que ofereceriam ensino sem pesquisa. Esse dualismo
se manifesta também no ensino fundamental ao se propor para a
rede pública um ensino aligeirado avaliado pelo mecanismo da
promoção automática e conduzido por professores formados em
cursos de curta duração organizados nas escolas normais
superiores com ênfase maior no aspecto prático-técnico em
detrimento da formação de um professor culto, dotado de uma
fundamentação teórica consistente que dê densidade à sua
prática docente. Esta última alternativa ficará reservada às
escolas destinadas às elites que certamente continuarão a
recrutar os seus professores dentre aqueles formados nos cursos
de licenciatura longa, preferentemente oriundos dos centros de
excelência constituídos pelas universidades públicas que
preservarão a exigência da indissociabilidade entre ensino e
pesquisa.
2. Visão crítica da concepção que orienta a política
educacional atualmente em vigor
A política educacional que vem sendo implementada no Brasil, sob
a direção do Ministério da Educação, se caracteriza pela
flexibilização, pela descentralização das responsabilidades
de manutenção das escolas através de mecanismos que forcem os
municípios a assumir os encargos do ensino fundamental
associados a apelos à sociedade de modo geral, aí compreendidas
as empresas, organizações não-governamentais, a comunidade
próxima à escola, os pais e os próprios cidadãos
individualmente considerados, no sentido de que cooperem, pela
via do voluntarismo e da filantropia, na manutenção física, na
administração e no próprio funcionamento pedagógico das
escolas. Delineia-se, assim, um estímulo à diferenciação de
iniciativas e diversificação de modelos de funcionamento e de
gestão do ensino escolar. Em contrapartida, com base na montagem
de um "sistema nacional de avaliação" respaldado pela
LDB, centraliza-se no MEC o controle do rendimento escolar em
todos os níveis, desde as creches até a pós-graduação. Há,
pois, um estímulo à descentralização traduzida na
flexibilização, diferenciação e diversificação do processo
de ensino mas uma centralização do controle dos seus
resultados.
Ora, as características acima enunciadas permitem perceber que a
política educacional que está sendo implementada acentua, pela
via da diferenciação apontada, as desigualdades educacionais
aprofundando o dualismo antes referido.
Aliás, cabe observar que a orientação em pauta se inspira
naquilo que poderíamos chamar de "modelo americano".
Esse modelo, diferentemente daquele que predominou nos países
europeus, considera como função principal do ensino
fundamental, a socialização das crianças ao passo que o modelo
europeu enfatizava a função de formação intelectual o que
implica a garantia de uma base comum, mais ou menos homogênea a
partir da qual todos os cidadãos podem participar, em
condições de igualdade, da vida da sociedade a que pertencem.
Visando, pois, criar esse patamar comum centrado no domínio dos
elementos fundamentais da cultura letrada de base científica, os
principais países organizaram os sistemas nacionais de ensino
como instrumento para universalizar a escola básica (o ensino
elementar) e, por esse caminho, erradicar o analfabetismo.
Em contrapartida nos Estados Unidos, a precedência da função
de socialização das crianças atribuída à escola básica
levou a vincular as escolas às comunidades próximas, isto é,
aos municípios, dispensando-se um sistema nacional e
priviligiando-se, na avaliação da aprendizagem das crianças,
sua capacidade de relacionamento e interação com as demais
crianças ao passo que, no modelo europeu, a avaliação
implicava um sistema de exames destinado a aferir o grau de
apreensão dos conhecimentos elementares que caracterizam uma
formação intelectual correspondente ao domínio da cultura
moderna entendida como necessária a toda a população e, por
isso, sendo objeto de um ensino comum a todos.
Do ponto de vista do processo, o modelo americano levou a uma
maior diferenciação de iniciativas assim como à maior
diversificação das formas de gestão, enquanto o modelo europeu
conduziu a uma maior centralização das iniciativas e a uma
forma de gestão relativamente unificada cuja responsabilidade
primordial se localizava no Estado nacional.
Do ponto de vista dos resultados se verifica que o modelo europeu
foi capaz de garantir razoável coesão, assegurando um patamar
comum que permitiu homegeneizar o acesso à cultura letrada, o
que significou um razoável grau de igualdade de condições de
participação de todos na vida social. Já o modelo americano
resultou bem mais desigual, apresentando diversas distorções
que têm sido objeto de alerta das próprias autoridades
políticas e educacionais do próprio país e que volta e meia
são divulgadas através da imprensa.
Com efeito, de vez em quando nos deparamos com notícias em
jornais ou revistas dando conta de que nos Estados Unidos é
comum ocorrer que um significativo número de jovens cheguem a
concluir o ensino médio e até mesmo a ingressar na universidade
sendo praticamente analfabetos (os denominados analfabetos
funcionais). Ora, essa é uma situação inteiramente estranha
aos países europeus. Em verdade, nunca encontramos notícias
semelhantes a respeito da Inglaterra, Alemanha, Bélgica,
Holanda, Suécia, Dinamarca, Noruega, França, Itália, Espanha,
Portugal, em suma, dos países europeus de modo geral. Sem
dúvida isso tem a ver com a diferença de modelos que presidiu a
organização do ensino em um e em outro caso.
As observações feitas acima nos permitem aquilatar a gravidade
da situação em que nos encontramos. Na verdade, considerando
que nós sequer chegamos a universalizar a escola elementar, a
adoção do modelo americano potencializa enormemente as
conseqüências negativas detectadas nos Estados Unidos
contribuindo para aprofundar ainda mais a extrema desigualdade
que é a triste marca de nossa tradição histórica. Vê-se
assim que, se na Europa a influência do modelo americano pode
ser até benéfica pois poderá contribuir para flexibilizar a
forma de um sistema já consolidado, no caso do Brasil, onde não
se conseguiu ainda implantar um sistema de ensino abrangente em
âmbito nacional, a referida influência resulta deletéria nos
distanciando ainda mais da meta de garantir a todas as nossas
crianças a desejada igualdade de acesso aos bens culturais.
3. Desafios para o século XXI
Curiosamente, a conclusão a que chegamos é que o grande desafio
que ainda se põe para o Brasil em termos educacionais ao
ingressar no século XXI, nos vem do século XIX. Trata-se da
tarefa de organizar e instalar um sistema de ensino capaz de
universalizar o ensino fundamental e, por esse caminho, erradicar
o analfabetismo. A Constituição de 1988 estabeleceu, nas
Disposições Transitórias, o prazo de dez anos para o
cumprimento dessas duas metas. Os dez anos se passaram e agora,
em decorrência da Emenda Constitucional de número 14 e da nova
LDB, está se procurando fixar no Plano Nacional de Educação,
mais dez anos para se atingir essas mesmas metas. Corremos,
assim, o risco de, daqui a dez anos, estarmos concedendo mais uma
década para realizar aquilo que os principais países fizeram a
partir do final do século XIX e início do século XX.
Nosso atraso já é, pois, secular o que vem implicando um grande
déficit histórico. E é preocupante constatar que a política
educacional em curso, embora disposta a atacar esse problema,
não o está encaminhando da forma mais adequada. Com efeito,
como já foi indicado, ao aderir ao "modelo americano"
nós corremos o risco de universalizar o ensino fundamental sem
conseguir, porém, erradicar o analfabetismo. E esse risco fica
mais evidente ao se constatar que um dos principais vetores dessa
política educacional é a redução de custos, sob o aspecto
econômico, o que leva a apostar todas as fichas na
"promoção automática" como via para possibilitar a
todas as crianças a conclusão do ensino fundamental. Mas,
convenhamos, a promoção automática não é solução para o
problema da repetência. Isto porque, como se infere da própria
denominação, a passagem é automática, isto é, os alunos são
promovidos independentemente do que fizeram ou deixaram de fazer.
Quer se tenha atingido os objetivos quer não, tenham ou não
preenchido os requisitos, a aprovação irá ocorrer. Deixa de
ser relevante o desempenho tanto dos alunos como dos professores.
Coisa diversa é o empenho em se atingir a meta da
"repetência zero", vale dizer, o objetivo de que todos
sejam promovidos. Aqui se trata de criar as condições para que
todos os alunos atinjam os objetivos definidos para os diversos
componentes curriculares que integram o processo de
ensino-aprendizagem. Acoplando-se simplesmente o mecanismo da
"promoção automática" à situação atual das
escolas ficando intactas as suas condições de funcionamento
pode-se eliminar o problema da repetência resolvendo-se o
problema do ponto de vista estatístico. Permaneceria, porém, o
mesmo quadro de deficiências e precariedades que se associam,
hoje, aos altos índices de repetência. O que precisa ser feito
é equipar adequadamente as escolas e instituir uma carreira
digna para o corpo docente como fizeram os países que, a partir
do final do século XIX, implantaram os seus sistemas nacionais
de ensino. Em condições adequadas o normal é que as crianças
aprendam sendo, portanto, promovidas. Assim, resolve-se o
problema da repetência porque as crianças, de fato, aprendem e
não porque se decretou a promoção automática. Aliás, os
sistemas de ensino europeus estavam apoiados em uma sistemática
relativamente rígida de exames como mecanismo para aferir se os
alunos seriam ou não promovidos e nem por isso tiveram que se
deparar com a necessidade de exorcizar o fantasma da repetência.
Ao contrário, o sistema se mostrou eficaz para garantir a
aprendizagem, o que permitiu estabelecer o fluxo regular dos
alunos que evoluíam, sem problemas, de uma série para outra
até a conclusão, sem defasagem de idade, da escolaridade
obrigatória.
Para enfrentar esse desafio, que há um século nos afronta, é
mister assumir de vez a educação como prioridade de fato e não
apenas nos discursos como ocorre recorrentemente. Nesse esforço
cabe, sem dúvida, promover alterações na legislação
educacional. Poderíamos aperfeiçoar determinados dispositivos
da Constituição assim como modificar a orientação que
prevaleceu na LDB e legislação complementar. Entretanto, não
me parece ser esta a questão fundamental mesmo porque uma
efetiva mudança de rumos na regulação legal da educação
estaria na dependência de uma nova correlação de forças
políticas que conduzisse a uma outra relação de hegemonia. No
que se refere, porém, aos desafios fundamentais que se põem
para a educação me parece haver um razoável grau de consenso,
o que faz com que a legislação em vigor não chegue a ser, na
letra da lei, um efetivo obstáculo para as ações que se fazem
necessárias. Nesse aspecto penso que a legislação que conta,
de fato, nas atuais circunstâncias, é aquela relativa ao Plano
Nacional de Educação. Sob esse aspecto o texto aprovado na
Câmara dos Deputados não deixa de se constituir num avanço em
relação à proposta do MEC. Entretanto, naquilo que é
decisivo, isto é, a questão do aporte de recursos para a
educação, a gradualidade adotada acaba por diluir e amortecer o
impacto requerido para implementar as transformações que não
podem mais ser postergadas. Por isso, ouso insistir na minha
proposta de um plano de emergência cujas linhas básicas
apresento a seguir.
Para fazer face ao atraso em que nos encontramos, proponho a
imediata duplicação do percentual do PIB investido em
educação, passando dos atuais 4% para 8%. Isso, em verdade,
apenas nos colocaria no nível das nações que mais investem em
educação a exemplo dos Estados Unidos, Canadá, Noruega e
Suécia que, segundo tabela apresentada pelo MEC em seu roteiro
para a elaboração do Plano Nacional de Educação, se situam na
faixa entre 7,5 e 8,5%. Observe-se, porém, que esses países
não têm o déficit que temos. Portanto, se estamos empenhados
em zerar o déficit, teríamos que investir muito mais. Penso,
porém, que, a partir desse esforço, teríamos chances de
começar a tratar com seriedade os problemas da educação,
ganhando condições de resolvê-los efetivamente. A propósito,
recordemo-nos da insistência de Anísio Teixeira para quem a
educação requer significativos investimentos não sendo
possível tratá-la seriamente com pouco dinheiro.
A duplicação do percentual do PIB permitiria que cada
instância passasse a ter o dobro dos recursos de que hoje
dispõe para a educação. Assim, os municípios que, por força
do FUNDEF, têm apenas 10% de seus recursos para investir em
educação infantil, passariam a ter 20%. Com isso, já começa a
se tornar viável a construção de uma ampla rede nacional de
educação das crianças de 0 a 6 anos, mantida e gerida pelos
municípios, com a orientação dos Conselhos Estaduais de
Educação.
Para o ensino fundamental, em lugar dos atuais 15% dos recursos
de Estados e Municípios, passaríamos a ter o equivalente a 30%.
Lançando mão do parágrafo único do artigo 11 da LDB, que
permite aos municípios a opção de se integrar ao sistema
estadual ou compor com ele um sistema único de educação
básica, será possível construir, a partir dos Estados, um
amplo sistema de ensino fundamental coordenado nacionalmente.
No caso do ensino médio teríamos o equivalente a 20% dos
recursos dos Estados, o que já permitiria que o objetivo de
universalização do ensino médio, previsto pela Constituição
Federal, deixasse o âmbito dos objetivos remotos para se tornar
viável no médio prazo. Com efeito, cabe observar que,
diferentemente do ensino fundamental que se compõe de oito
séries, o ensino médio tem apenas três.
Quanto à questão dos professores, considerando a determinação
do FUNDEF de que 60% dos recursos se destinem ao corpo docente, a
duplicação do percentual tornará exeqüível a meta de
implementar a jornada de 40 horas em uma única escola, além de
viabilizar a criação de uma espécie de PICD da Educação
Básica, semelhante ao que se fez com o ensino superior, através
da CAPES, viabilizando, assim, a qualificação dos professores
através de bolsas de estudo para freqüentar cursos específicos
nas universidades públicas de melhor qualidade.
Finalmente, em relação ao ensino superior, a duplicação dos
recursos permitirá à União, com o montante atual, consolidar
as universidades federais além de manter sua rede de escolas
técnicas. Os recursos adicionais, da mesma magnitude dos atuais,
poderiam ser divididos em duas fatias: metade se destinaria à
educação básica para que a União possa cumprir a função de
apoio técnico e financeiro, suprindo as deficiências locais; a
outra metade constituiria um fundo por meio do qual seriam
financiados projetos que engajariam fortemente as universidades
na realização das metas definidas no Plano Nacional de
Educação.
Está claro que a implantação de uma proposta como essa não
resolverá, por si só, todos os problemas da educação
brasileira. Mas estou convencido que é somente a partir de uma
iniciativa desse tipo que a solução se tornará possível.
Apresentei essa proposta primeiramente no II CONED e depois a
registrei no livro Da nova LDB ao novo Plano Nacional de
Educação, publicado em abril de 1998, retomando-a em outras
oportunidades. A única objeção que se poderia levantar contra
ela diz respeito à sua viabilidade à vista da propalada
escassez de recursos com que conta o Poder Público para fazer
face a necessidades de toda ordem e em todos os setores, de modo
especial naqueles da área social. Entretanto, sua viabilidade
pode ser constatada no exemplo dos demais países que implantaram
os seus sistemas, inclusive aqueles que o fizeram tardiamente
como são os casos do Japão e da Coréia. Além disso, como
também já se indicou, a meta de 8% do PIB destinados à
educação resulta perfeitamente viável porque foi praticada por
diversos países. Mas temos também demonstração dessa
viabilidade em nosso próprio país através de projetos de
impacto que contaram com grandes investimentos públicos em
decorrência da vontade política de torná-los realidade. Estão
nesse caso a construção de Itaipu, as usinas nucleares de Angra
dos Reis e, no atual contexto, o SIVAM, o gasoduto proveniente da
Bolívia e o PROER. Daí ter eu sugerido em determinada ocasião
que se criasse uma espécie de PROEN (Programa de Recuperação
da Educação Nacional), através do qual seriam captados
recursos de monta para viabilizar a implantação de nosso
sistema de educação em âmbito nacional.
Penso, portanto, que, se não partirmos para um plano de
emergência lúcido, corajoso, arrojado, que sinalize o empenho
efetivo em reverter a situação de calamidade pública em que se
encontra o ensino dos diferentes graus em nosso país, as
proclamações em favor da educação não passarão de palavras
ocas, acobertadoras da falta de vontade política para enfrentar
o problema. E, nesse diapasão, avançaremos século XXI adentro,
ampliando ainda mais o já insuportável déficit histórico que
vem vitimando a população brasileira em matéria de educação.
Campinas, 2 de novembro de 2000.
Brasília, 23 de novembro de 2000.
Dermeval Saviani