O Iluminismo de
Kant e o Positivismo de Durkheim em relação à Educação
Azilde L. Andreotti (1)
A partir de algumas idéias de Kant a respeito da função da
educação, no livro "Sobre a Pedagogia", examino como
no século XIX, Émile Durkheim (1858-1917) retoma, dentro do
positivismo, a função da educação para a consolidação do
Estado burguês.
O livro "Sobre a Pedagogia" compõe-se de anotações
de aulas ministradas por Kant e foi publicado após a sua morte.
Iluminista alemão, Kant, nesses textos, desenvolveu alguns
conceitos de razão, liberdade, disciplina e autonomia do
indivíduo. Analisando o autor a luz do momento e contexto em que
escreveu essas anotações, identificamo-lo com os ideais da
burguesia européia do século XVIII.
A obra de Kant, principalmente "Crítica à Razão
Pura", o coloca como o filósofo que tenta fazer a síntese
entre o empirismo (sentidos) e o racionalismo (razão), questões
essas já presentes no século XVII.
O iluminismo, do qual Kant é um dos filósofos expressivos,
significou um projeto racionalista que questionava as bases
religiosas do mundo feudal, secundarizando a questão da fé e
mudando a perspectiva medieval. Representativo dos anseios da
burguesia, o iluminismo propõe uma nova forma de apreensão da
realidade, a partir da razão e autonomia do indivíduo.
A educação começa a ser pensada como instrumento a serviço do
indivíduo e do grupo social, ou seja, a educação reconhecida
com uma função social.
Kant, em seus escritos a respeito da educação, supervaloriza
sua função. Percebe a educação como positiva, no sentido de
intervenção, do poder que a educação teria sobre o
indivíduo. Vê na disciplina, indispensável para que a
educação cumpra seu papel, um fator negativo, no sentido de que
tira o indivíduo de
seu estado bruto. Desenvolve a idéia de autonomia do educando a
partir da razão e integração a nova sociedade que se formava,
com anseios de liberdade, igualdade e fraternidade.
Transcrevo abaixo alguns parágrafos das anotações de Kant em
"Sobre a Pedagogia": (2)
- "Talvez a educação se torne sempre melhor e cada uma das
gerações futuras dê um passo a mais em direção ao
aperfeiçoamento da humanidade, uma vez que o grande segredo da
perfeição da natureza humana se esconde no próprio problema da
educação". "É entusiasmante pensar que a natureza
humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela
educação, e que é possível chegar a dar àquela forma, a qual
em verdade convém à humanidade. Isso abre perspectiva para uma
futura felicidade da espécie humana." p. 16
"...não se deve educar as crianças segundo o presente
estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor,
possível no futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade e da
sua inteira destinação .Esse princípio é da máxima
importância. De modo geral, os pais educam seus filhos para o
mundo presente, ainda que seja corrupto. Ao contrário, deveriam
dar-lhes uma educação melhor, para que possa acontecer um
estado melhor no futuro." p.22
A burguesia, no século XVIII , como classe revolucionária,
representou os anseios do povo contra o poder absolutista e
feudal. No século XIX, de classe revolucionária, a burguesia
passa à classe conservadora para se consolidar no poder.
Abandonam-se as conquistas anteriores de uma racionalidade
humanista, de liberdade do indivíduo, no sentido de sua
emancipação como sujeito. Os ideais de liberdade, cidadania,
autonomia tem um limite, o limite da ameaça que podem
representar à ordem social burguesa.
O conservadorismo, aqui representado pelo positivismo de Émile
Durkheim , percebe na educação, não mais um projeto de
autonomia, mas de integração do indivíduo à ordem social
burguesa.
A afirmação que o indivíduo é uma "coisa", a
apologia da positividade, substituem a idéia da educação para
a formação de uma nova sociedade nascente. Agora faz-se
necessário a educação como integradora para "uma
sociedade já dada ao nascermos", nas palavras de Durkheim.
O pensamento de Durkheim sofreu a influência dos conservadores
do século XVIII, que reconheceram na Revolução Burguesa uma
ameaça as tradições e estabilidade consolidadas pelo mundo
feudal, responsabilizando os iluministas como ideólogos dessa
nova ordem.
Não mais contra o mundo feudal, mas na necessidade de defender o
estabelecimento da sociedade moderna, os positivistas retomaram
alguns conceitos dos chamados "profetas do passado".
Alguns trechos do livro "Educação e Sociologia" de
Émile Durkheim: (3)
- "A sociedade se encontra, a cada nova geração, como que
em face de uma tabula rasa, sobre a qual é preciso construir
quase tudo de novo. É preciso que, pelos meios mais rápidos,
ela agregue ao ser egoísta e a-social, que acaba de nascer, uma
natureza de vida moral e social".p.42
"Se os indivíduos, como mostramos, só agem segundo as
necessidades sociais, parece que a sociedade impõe aos homens
insuportável tirania. Na realidade, porém eles mesmos são
interessados nessa submissão, porque o novo ser que a ação
coletiva, por intermédio da educação, assim edifica, em cada
um de nós, representa o que há de melhor no homem, o que há em
nós de propriamente humano".p.44
"É a sociedade que nos lança fora de nós mesmos, que nos
obriga a considerar outros interesses
que não os nossos, que nos ensina a dominar as paixões, os
instintos, e dar-lhes lei, ensinando-os o sacrifício, a
privação, a subordinação dos nossos fins individuais a outros
mais elevados. Todo o sistema de representação que mantém em
nós a idéia e o sentimento da lei, da disciplina interna ou
externa, é instituído pela sociedade". p.45
Relendo os textos de Durkheim, sobre educação, encontrei um
diálogo deste com Kant:
"Segundo Kant, o fim da educação é desenvolver, em cada
indivíduo, toda a perfeição de que
ele seja capaz. (grifo do autor). Mas, que se deve entender pelo
termo perfeição? Perfeição, ouve-se dizer muitas vezes, é o
desenvolvimento harmônico de todas as faculdades humanas. Levar
ao mais alto grau possível todos os poderes que estão em nós,
realizá-los tão completamente como possível, sem que uns
prejudiquem os outros - não será, com efeito, o ideal supremo?
Vejamos, porém, se isso é possível. Se, até certo ponto, o
desenvolvimento harmônico é necessário e desejável, não é
menos verdade que ele não é integralmente realizável; porque
essa harmonia teórica se acha em contradição com outra regra
da conduta humana, menos imperiosa: aquela que nos obriga a nos
dedicarmos a uma tarefa, restrita e especializada. Não podemos,
nem nos devemos dedicar, todos, aos mesmo gênero de vida; (...)
Nem todos somos feitos para refletir; e será preciso que haja
sempre homens de sensibilidade e homens de ação." p. 35
O pensamento de um autor não pode ser examinado por trechos de
sua obra. Mas, a presente reflexão é somente um preâmbulo do
que julgo importante como consideração da influência do
positivismo na educação brasileira.
Duas questões necessárias para serem examinadas:
A primeira, que é fundamental analisarmos a obra de um autor
considerando o contexto histórico em
que ela foi elaborada, para não se incorrer no erro de
examiná-la à luz do presente momento, tornando, muitas vezes,
incompreensível alguns conceitos, como também de não lidar,
adequadamente, com questões de cunho ideológico, presentes nas
produções teóricas.
A segunda, que o positivismo deve ser pensado como reação
conservadora aos ideais preconizados,
em um primeiro momento, pela sociedade moderna. Essa última
afirmação nos remonta as Reformas Educacionais brasileiras das
primeiras décadas do século XX, que tiveram do positivismo
grande influência, dentro dessa herança conservadora.
(1) Doutoranda da Faculdade de Educação da Unicamp
(2) Kant., Immanuel. "Sobre a pedagogia". Piracicaba,
Unimep, 1996.
(3) Durkheim, Émile. "Educação e Sociedade". São
Paulo, Melhoramentos, 1978, 11ª ed.
Este livro nos chegou traduzido por Lourenço Filho em 1929.