Homenagem a Professora de Tupitinga:

 

“O coração tem razões que a própria razão desconhece”

 

Nilson Thomé

Mestre em Educação

Professor de História na Universidade do Contestado Campus de Caçador – UnC

Doutorando em Educação na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.

 

  

Em nossos estudos que objetivam a construção da História da Educação no Contestado (1), dentro da História da Educação do Estado de Santa Catarina, referenciamos o Dr. João Alfredo Medeiros Vieira, um dos mais destacados escritores catarinenses da segunda metade do Século XX, com trabalhos em Literatura, Filosofia, Filologia e Direito, autor da famosa “Prece de um Juiz”, traduzida para mais de quarenta línguas. No distante ano de 1956, João Alfredo Medeiros Vieira foi Supervisor da 4ª Zona Censitária do VI Recenseamento Geral de Santa Catarina. Era, portanto, um dos “agentes itinerantes” do IBGE, encarregados de orientar os agentes municipais sobre a coleta de dados. Nesta missão, chegou à Região do Contestado, quando visitou o Oeste Catarinense.

 

         Numa manhã de um dia de agosto de 1956, no auge do rigor do inverno,  deslocando-se da cidade de Campos Novos para Capinzal, ao passar por um lugarejo, perto da localidade de Tupitinga, encontrou uma escola primária, em aula. Parou, desceu do carro, conversou com a professora, observou o recreio dos alunos e, em seguida, retomou a viagem. Em Campos Novos, soube detalhes da comunidade, da escola e da vida da professora, que associou ao que tinha visto e ouvido pouco antes, e fez suas anotações.

 

         As impressões da viagem levaram João Alfredo Medeiros Vieira a publicar Diário de um Agente Itinerante (1969), uma das mais valiosas obras (2) que narram, a par de episódios históricos pitorescos, a paisagem física e humana do Centro-Oeste do Estado de Santa Catarina, retratando-o na década de 1950. Com apreço, homenageando o ilustre catarinense, inserimos aqui, um trecho do seu “Diário”, que mostra-nos o cenário de uma escola primária, de numa pequena comunidade rural do interior de Campos Novos, com o papel principal desempenhado pela Professora Aurélia.

 

Este texto, em que Medeiros Vieira revela-se emocionado e consegue emocionar quem o lê e relê, merece destaque especial – ipsis literis – na História da Educação do Contestado. Reproduzindo-o, homenageamos seu autor e a professora-símbolo Aurélia, na esperança de que este ensaio alcance o magistério regional do Século XXI e por ele seja utilizado como reflexão:

 

“A PROFESSORA DE TUPITINGA”

 

A camioneta que foi cedida há duas semanas, pela Prefeitura de Lages para êste nôvo circuito através dos municípios de minha Zona Censitária, estaciona rente a um conjunto de cinco velhos casebres, no último dos quais funciona a escola isolada. Do outro lado há mais três ou quatro casas de pau-a-pique, antes da curva da estrada.

 

Estamos num desolado lugarejo situado dez quilômetros além da vila de Tupitinga, a qual, por sua vez, dista trinta e um quilômetros de Campos Novos, a meio caminho para Capinzal, no meio-oeste. Durante horas percorrêramos a planície deserta e interminável.

 

Saltamos a fim de trocar um pneu e esticar as pernas, depois de longo percurso cheio de sacudidelas e piruetas, numa rodovia lamacenta, perigosa e repleta de curvas. A geada cobre o pasto e as margens da estrada. Os arbustos ressequidos revelam a ação implacável das intempéries. Um cão magro e desconfiado atravessa a rua e desaparece, à chegada do veículo. O aspecto do lugar é de profunda quietude, indiferença e solidão.

 

Já ao apearmos, porém, escutamos o vozerio da garotada em aula, a quebrar a monotonia ambiente, obedecendo à professôra:

 

- Duas veis um dois... Duas veis, dois, quatro...

 

À frente, junto à mesa, a môça, de guarda-pó branco, gesticula com graça e firmeza, tendo a varêta apontada para o quadro negro:

 

- Três vêzes seis, dezoito... Três vêzes sete, vinte um...

 

Formando vivo contaste em meio à miséria que a rodeia, ela é uma jovem de singular beleza, realçada por algo que denota consciência do dever, decisão e simpatia. Chama-se Aurélia. Tem os cabelos castanhos presos atrás por uma fita, e os olhos, belos e melancólicos, parecem traduzir um misto de ternura e ansiedade. Possui tez clara e um corpo de linhas visivelmente harmoniosas. A formosura dos olhos e do corpo, não parece, contudo, preocupá-la: está dedicada de corpo e alma, à sua missão. Mora com seus pais em Campos Novos e perfaz de ônibus, diàriamente, o trajeto de quarenta e um quilômetros, ida e volta, passando pela vila de Tupitinga para vir dar aulas e cuidar das crianças nesta remota freguesia.

 

- Antônio, quanto é nove vêzes sete?

 

O menino titubeia e ela se volta para uma menina a um canto:

 

- Você, Clarisse...

 

-  Sessenta e três.

 

- Muito bem! - aplaude a mestra - Viu como ela sabe?

 

À primeira vista não se diria que essa môça, como se não bastasse o seu árduo mister de professora primária, vem realizando corajosamente, em silêncio - conforme contam os moradores do vilarejo e os pais dos alunos - uma verdadeira obra de educação e assistência social. Extremamente desprendida e com profunda vocação para o magistério, não só ensina, mas também veste e alimenta com seus minguados recursos as criancinhas mais pobres, que diàriamente perfazem, a pé, para virem à escola, mais de dez quilômetros sob o frio e a geada. Quando é preciso, também aplica injeções nos doentes, como na última epidemia de gripe. Enfrenta perigos e dificuldades como quem já está habituado aos mesmos. E une, a um só tempo, ciência, fé e assistência social.

 

Um menino chega atrasado porque a mãe estava doente. Ela o recebe:

 

- Manoel, você está só com essa camiseta? - pergunta ao guri magricela que chega, tiritando de frio. - Venha cá - e levando-o aos fundos da sala, atrás de um tabique, põe nêle um paletòzinho velho.

 

Duas meninas e outro menino também mal agasalhados estão tremendo de frio, encolhidos a um canto; leva-os ao fundo e cobre-os com alguns farrapos que tem guardados.

 

Interrompendo a aula por dez minutos, como é de praxe às nove horas, dá a todos os trinta petizes - que agora a cercam - o pão com manteiga e uma caneca de café. Por trás do tabique há um antigo fogão a lenha que conseguiu, por doação, de um serraria próxima. Ela mesma prepara a sopa que é servida às dez e meia.

 

As crianças são, na maioria, filhos de maloqueiros, roceiros ou agregados de estâncias distantes. Vivem em condições de penúria e as mães, que trabalham em pequenos roçados ou fazem outros serviços, geralmente não têm comida suficiente para alimentá-los. Um pedaço de charque ou linguiça com pirão e às vêzes uma tijela de arroz, eis o seu alimento - quando o têm, pois a miséria é chocante. Há oito ou dez que são órfãos de pai e alguns outros órfãos de mãe. O reduzido plantio é impiedosamente castigado pelas geadas fortes. É rara a família das redondezas que possui uma vaca leiteira. Vivem em choupanas de pau-a-pique, no chão de terra batida; algumas destas nem são cobertas com telha, mas com palha.

 

Aurélia pertence a uma família de modestos lavradores de Campos Novos, muito religiosos. Tendo concluído com sacrifício o seu Curso Normal, aceitou lecionar no vilarejo, embora com parcos vencimentos e precisando ainda custear suas viagens de ida e volta, cobrindo oitenta e dois quilômetros cada dia, ou três vêzes por semana. Às vêzes pernoita no casebre de pais de alunos. O povo do lugar, que a estima como a ninguém, comenta que lá na cidade - Campos Novos - ela tem diversos admiradores, entre os quais um que, na paixão que lhe vota, não cessa de assediá-la, mas sem encontrar ressonância no coração da môça. Ao que se informa, seu amor se voltava por inteiro para um rapaz de um distrito do interior, namorado desde a meninice, peão de gado, que a amava intensamente e que veio a morrer durante um “rodeio”, ao ser atingido pelos chifres de um touro, o qual o atirou longe e pisoteou-o até o fim. Desde então - dois anos atrás - Aurélia, que jamais se conformou com a perda, aumentou a sua já conhecida dedicação às crianças pobres de sua escola. Talvez para esquecer. E para compensar os sofrimentos de sua infância.

 

Na hora  do recreio os garotos saem em debandada por todos os lados, saltam para cima dos cepos e troncos no redor, numa grita ensurdecedora.

 

         Conversando com a môça, venho a saber, por coincidência, que, por oferta sua à Agência de Estatística do município de Campos Novos, ela se encarregara de reunir os moradores do vilarejo, a fim de orientá-los quanto ao Recenseamento e prestar-lhes os esclarecimentos necessários. São cêrca de dezoito famílias nas vizinhanças e mais umas quinze no trecho compreendido entre o lugarejo e a sede da vila de Tupitinga. A sua convocação,  em uma tarde de sábado,  vieram todos,  ocasião em que ela os instruiu sôbre as finalidades dos censos. E, como aos sábados é costume reunirem-se todos para a “reza”, Isto é, a recitação do “terço” em comum, após terminar a reunirão ela dirigiu também o têrço.

 

O vigário da Paróquia de Campos Novos percorre com regularidade as capelas do interior, passando, via de regra, uma vez por mês em Tupitinga para a celebração da Missa. É um dia quase festivo para os habitantes das cercanias. E nas semanas restantes o povo se reúne na capela da vila e também, alternadamente, nos casebres do povoado, ou até mesmo na escola. A môça colabora, assim, com o sacerdote, na pregação da palavra divina.

 

Não obstante a sombra de melancolia que se percebe em seus lindos olhos castanhos, ela jamais revela o que lhe vai no íntimo. Pelo Contrário, nada deixa entrever.

 

- Gosta daqui? - pergunto-lhe enquanto saboreio, imitando-a, a maçã que me oferece. Durante o recreio, ela fornece a metade de uma maçã ou pêra a cada garoto após a sopa. Recebe as frutas de plantadores de São Joaquim, os quais a cada dez dias lhe mandam, por mediação do seu pai, uma partida de pêras e maçãs para as crianças.

 

- Se gosto?... - olha-me quase com espanto. - Gosto muito! Essas crianças são um amor! E como a gente se sente bem no meio deles!... - ri, contemplando a gurizada em polvorosa, no recreio.

 

Volta-se chama um piá que vai atirar uma bola de lama em outro e repreende-o com um gesto:

 

- Laércio! Não! Que é isso, menino? Essa brincadeira, não, Laércio! - e vai até lá, separando os dois.

 

Outro guri pede socorro:

 

- Dona Aurélia, êle quer me bater - aponta um maior.

 

- Não, Fabiano! Pare com isso!

 

Eu não posso resistir à pergunta:

 

- Mas como é que uma pessoa no viço da mocidade, como a senhorita, consegue viver, praticamente, nesta solidão, neste lugar desolador e distante de tudo? Suportando o frio, a geada, as privações...

 

- É muito fácil saber - responde-me com um sorriso. É porque aqui eu me sinto bem. Êles gostam de mim e eu dêles. São alegres e não têm quase nada, pois vivem numa pobreza extrema. Como eu também sou pobre e passei na minha infância por tôdas as privações, sinto-me feliz em dar a êles um pouquinho de felicidade. Já estou acostumada desde pequena ao frio e às dificuldades.

 

Embora ame todos os seus pupilos, a maior parcela de afeição de Aurélia é reservada para um piá de olhos negros e vivos, que agora vejo sentado na soleira da porta, mastigando sôfregamente a casca do seu pedaço de maçã. Tem oito anos e é um menino aleijado, seu pé direito é torto e possui uma córcova que o faz andar grotescamente inclinado, quase de lado, com a cabeça muito erguida. Os colegas o chamam de “corcunda”.

 

Além de fisicamente defeituoso, é um tanto retardado. Contudo diz-me a professôra, revela nos estudos bastante interesse, sendo que em trabalhos manuais - como a confecção de tôscas figuras de madeira - sobressai pela perfeição do seu artezanato. Custa um pouco a aprender as lições, mas quase sempre o consegue.

 

Falando sôbre os problemas do lugar, Aurélia conta que se compadeceu muito das crianças, porque em casa êles não têm o mínimo indispensável para a subsistência . O pai de um é ervateiro e passa longo tempo no mato distante; o de outro é derrubador de lenha para serrarias e mal ganha para dar de comer aos filhos; outros são tropeiros de fazendas situadas a vários quilômetros de distancia, permanecendo ausentes durante semanas seguidas; a mãe de outra é viúva e se mantém com o que consegue obter, fazendo, às vêzes, doces para vender na vila de Tupitinga ou com auxílios que recebe; o pai de dois garotos é entrevado, vítima de paralisia que resultou de uma queda de cavalo; o pai de duas meninas morreu há um ano, atingido por uma faísca elétrica, durante forte trovoada, no curral onde tratava um porco; o pai de outra menina é doente mental e foi internado num manicômio, o padrasto de um garoto está prêso na Penitenciária do Estado, condenado por homicídio; a mãe de outra menina - que mora com uma velha tia - fugiu com um chofer de caminhão que passara há um ano e meio pela freguesia.

 

Aurélia não se limita, no entanto, a ficar ensinando, corrigindo cadernos, dando pão com manteiga e sopa à criançada. Nem, tão pouco, a fazer caridade apenas. Resolveu lutar no sentido de melhorar o nível de vida das famílias pobres da região; obteve pequenos auxílios da Paróquia; sementes de hortaliças de uma Associação Rural: medicamentos de uma sociedade, beneficente, alguns agasalhos, mesmo uns poucos andrajos, das obras de caridade. Por sugestão sua, diversos roceiros organizaram uma espécie de cooperativa rudimentar, e um dêles, embora analfabeto (pai de um aluno), mas com espírito de iniciativa, vem incentivando os demais a lutarem juntos.

 

Agora Aurélia está empenhada em restaurar o velho casebre da escola. O seu espírito de renúncia e abnegação, bem como o seu devotamente aos humildes, o seu exemplo de cristianismo autêntico e silencioso, que já vai encontrando imitadores em outras vilas, fazem a gente meditar.

 

Como é - pergunto-me sem encontrar resposta para êsse mistério da bondade humana - que uma linda môça de vinte e poucos anos pode renunciar ao confôrto das cidades, aos atrativos e encantos que a vida oferece, para vir sepultar os melhores anos de sua existência na triste solidão dêste lugarejo distante? E com a remuneração tão pequena que o Estado - esquecendo o imenso valor da obra de uma professôra primária - lhe paga?

 

Que outra coisa senão um amor profundo pela humanidade sofredora poderia fazer dela, como dizem todos aqui, o “anjo do guarda” dêstes infelizes?

 

Pascal nô-lo responde:

 

- “O coração tem razões que a própria razão desconhece”...

 

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Centenas de professoras, iguais a Aurélia e da mesma forma como Aurélia, atuaram dedicadamente nos interiores dos municípios da Região do Contestado, recompensadas apenas pela alegria de, ao final do ensinamento, poder perguntar:

 

- Quanto é nove vezes sete? ...

de ter a felicidade de ouvir: 

- Sessenta e três! ...

e de, contente, dizer:                 

- Viu como ela sabe? ...

 

Neste 2002, quase cinqüenta anos depois do feliz encontro da Professora Aurélia pelo Mestre João Alfredo Medeiros Vieira, reproduzimos este texto para homenagear as persistentes e abnegadas “professoras aurélias” que, espalhadas pelos interiores dos nossos municípios, atuaram junto as escolas públicas das comunidades rurais, e todas aquelas que atuam, ainda hoje, no magistério público dos confins da Região do Contestado, boa parte delas ainda nas mesmas condições de meio século atrás.

 

Notas

 

(1) Pesquisa sobre a Educação Escolar a Região do Contestado, no Centro-Oeste do Estado de Santa Catarina.

(2) VIEIRA, João Alfredo Medeiros.  Diário de um Agente Itinerante.  Rio: Leitura, 1969, p. 135-139).