A ESCOLA DA VIDA E A
FORMAÇÃO INTELECTUAL DO VISCONDE DE MAUÁ[1]
Marli Maria Silva Quintanilha[2]
Celina Midori Murasse- Orientadora[3]
Em geral, as
pesquisas existentes sobre a formação intelectual de qualquer personagem de
destaque descrevem, com detalhes, a sua trajetória pelas diferentes
instituições escolares até a conclusão de seus estudos. Entretanto a vida
intelectual de Irineu Evangelista de Sousa (1813-1889), o Visconde de Mauá,
efetuou-se por uma via diversa, longe dos bancos escolares. A sua formação
econômica divergia daquela oferecida à população escolarizada da época e estava
vinculada às atividades práticas exercidas, tanto por ele como por sua família
de descendentes de imigrantes europeus, para garantir a manutenção de suas
vidas. Assim o objetivo deste estudo é analisar e compreender a educação
brasileira no período imperial (1822-1889) em contraste com a educação do
visconde de Mauá. Esta investigação resgata o pensamento de Mauá numa
perspectiva histórica, isto é, busca no contexto da época os elementos
explicativos para as suas convicções pessoais. Para tanto utiliza,
primordialmente, fontes primárias impressas tais como, autobiografia, texto
econômico e cartas, de autoria de Irineu Evangelista de Sousa. Além destas,
examina, as fontes secundárias impressas de autores, tanto contemporâneos
quanto do século XX, que abordam a temática e o período delimitado para esta
pesquisa.
Irineu Evangelista de
Sousa, filho do estancieiro João Evangelista de Ávila e Sousa e Mariana de
Jesus Batista, nasceu aos 28 de Dezembro de 1813, na freguesia de Nossa Senhora
da Conceição do Arroio Grande, na Capitania Del-Rey de São Pedro do Sul. Os
avós, tanto paternos quanto maternos, segundo Caldeira (2001, p. 38), eram
provenientes da Ilha dos Açores. Os primeiros a desembarcar no Brasil, em 1792
foram os avós maternos, José Batista de Carvalho e Isabel de Carvalho que se
instalaram numa sesmaria de 4 mil hectares[4],
concedida pelo rei, situada entre os Arroios do Chasqueiro e Grande. Em 1798,
Manuel Jerônimo da Silva, avô paterno de Irineu Evangelista estabeleceu-se nas
terras vizinhas às de Carvalho. Na época, muitos açorianos seguiram a mesma
rota e se instalaram naquelas cercanias.
A base econômica da
colonização do Rio Grande do Sul foi, segundo Prado Junior (1987, p. 95), a
pecuária em virtude de ser a região imprópria para a agricultura. Isto
dificultava o recrutamento de povoadores. Diante disso, o governo português
viu-se obrigado a recorrer às camadas pobres ou médias da população e conceder
grandes vantagens aos colonos que aceitavam estabelecer-se lá. Assim, prossegue
Prado Junior (1987, p. 96), a maior parte dos colonos era açoriana, tal como os
avós de Mauá:
O recrutamento dos colonos se fez sobretudo na
ilhas dos Açores que sempre constituíram um viveiro demográfico a braços com
excesso de populações que o exíguo território do arquipélago não comportava.
Foram escolhidos de preferência camponeses que emigravam em grupos familiares,
o que também é quase único na colonização do Brasil. Por todos estes motivos, constitui-se
nos pontos assinalados um tipo de organização singular entre nós. A propriedade
fundiária é muito subdividida, o trabalho escravo é raro, quase inexistente, a
população é etnicamente homogênea. Nenhum predomínio de grupos ou castas,
nenhuma hierarquia marcada de classes sociais. Trata-se em suma de comunidades
cujo paralelo encontramos apenas, na América, em suas regiões temperadas, e
foge inteiramente às normas da colonização tropical, formando uma ilha neste
Brasil de grandes domínios escravocratas e seus derivados. Uma ilha muito
pequena, aliás, e sem importância apreciável no conjunto da colônia. Mesmo
computando apenas este setor meridional de que nos ocupamos, seu papel é
reduzido; o que contará nele são as grandes fazendas de gado do interior, as
estâncias.
Estas estâncias, distribuídas em grande
quantidade na época visavam, conforme Prado Junior (1987 p. 96) “consolidar a
posse portuguesa” na região da fronteira brasileira, lá onde Irineu Evangelista
de Sousa nasceu e passou a sua infância. Sua vida, segundo Ganns (1998, p.
17-18), sofreu uma reviravolta quando ele estava com apenas 5 anos: seu pai foi
assassinado.
A partir daí, a
família de Mariana que era influente, passou a ajudá-la a enfrentar as
dificuldades. Assim, afirma Caldeira (2001, p. 52), “além da tradição, ela contava com certo prestigio social, reforçado
pela posição de liderança religiosa na região”. Porém, a manutenção da
estância dependia do trabalho cotidiano que incluía algumas tarefas exclusivas
de homem as quais não estavam sendo realizadas. Embora fossem grandes os
problemas enfrentados, prossegue Caldeira (2001, p.52), Mariana conseguiu
desdobrar-se em ser mãe, fazendeira e dona de casa, fazendo o possível para
imprimir nos filhos a capacidade de enfrentamento dos obstáculos da vida.
Caldeira (2001, p. 44) relata que, de acordo
com os costumes da época, os meninos, mesmo nas famílias de posse, eram
inseridos no mundo do trabalho assim que começavam a andar: aprendiam a manter
as ferramentas prontas para uso, a plantar, a colher e cuidar dos animais
domésticos, preparando-se, desta forma, para a tarefa de ampliar os domínios
conquistados pelos antepassados. Porém o destino de Sousa foi diferente visto
que ao invés de ser mandado à casa de algum parente para aprender a lidar com
as tarefas relativas à estância, e assim preparar-se para assumir o controle de
sua casa, sua mãe resolveu colocá-lo no caminho das letras que conhecia,
ensinando-o a escrever e a fazer contas. Esta opção, afirma Caldeira (2001, p.
53), não era valorizada na região, pois saber escrever por ali funcionava mais
como um toque de distinção aristocrática do que como atividade útil.
Em pouco tempo,
Mariana de Jesus casou-se novamente, mas antes disso teve que se desfazer dos
filhos. Assim, Guilhermina casou-se com apenas 12 anos e o menino Irineu com 9
anos, foi levado por seu tio para o Rio de Janeiro. A partida deste foi assim
analisada por Caldeira (2001, p. 53): “Ao
menos Irineu faria sua vida com aquilo que ela tinha ensinado, e que valia tão
pouco naquela terra selvagem”.
Em 1822, no alvorecer do
Império do Brasil, Irineu Evangelista, chegou ao Rio de Janeiro, onde
permaneceu até o final de sua vida, em 21 de outubro de 1889. Por isso Vainfas
(2002, p. 388) afirma que “sua vida confunde-se com a do Império, não só
cronologicamente, mas por sua participação ativa para inserir o Brasil nos
quadros da modernidade”.
Lá na capital do Império, graças à influência do seu tio José
Batista de Carvalho, iniciou sua carreira numa pequena loja comercial. Na época
o comércio[5],
segundo Faria (1958 p. 49), era considerada uma profissão inferior, destinada
aos portugueses pobres e brasileiros analfabetos. Isso levava os rapazes de boa
família a se distanciarem dele, todavia, foi ali que Mauá iniciou sua vida profissional.
Seu desejo de saber, conforme Ganns, (1998, p. 22), fez com que um
dos fregueses da antiga casa se dispusesse a lhe dar aulas após o expediente.
Dessa forma, Mauá teve contato com a contabilidade, com o francês e outras
matérias. Os livros eram guardados sob o mesmo balcão onde ele “dormia poucas
horas à noite”. Aproveitava para
estudar também, nos momentos em que o patrão se ausentava, pois este, embora
sendo bom, enquadrava-se no pensamento da época segundo o qual para ser
caixeiro, não era necessário ser letrado.
Deste modo, antes de
completar doze anos Sousa transferiu-se, na função de caixeiro, para uma loja
comercial de maior importância, a do português João Rodrigues Pereira de
Almeida. Aos treze anos, devido a sua postura correta, já havia adquirido a
confiança do patrão e era o responsável pela guarda das chaves do cofre.[6]
Durante o período em que foi
caixeiro na loja de Pereira de Almeida, Irineu Evangelista de Sousa teve acesso
a todo o mecanismo que regia o comércio no Brasil, pois, segundo Murasse (2001,
p.72), ele diferia dos demais comerciantes portugueses da época visto que, além
de atuar no comércio, era banqueiro, armador, industrial e sua maior fonte de
lucro estava no tráfico de escravos. Por volta de 1829, continua a autora,
Pereira de Almeida, em conseqüência da crise econômica que atingiu várias casas
comerciais portuguesas, decidiu liquidar seus negócios através de uma falência
amigável. Por isso, colocou à disposição de seus credores todos os seus bens
particulares, inclusive a sua casa. Seu credor principal Ricardo Carruthers,
comerciante escocês “proprietário da Carruthers & Co., uma das maiores
empresas de importação da praça”,
negou-se a receber o pagamento, pois, segundo ele, na Inglaterra o lar era
intocável.
Em retribuição ao favor, Almeida apresentou Sousa ao escocês que,
segundo Ganns (1998, p. 23), entregou o menino como se fosse uma jóia. Faria
(1958, p. 63) ao referir-se a este episódio afirma terem sido estas as palavras
de Pereira de Almeida: “... quero pagar-lhe
este serviço, dou-lhe um bom caixeiro”. Já Besouchet (1978, p. 26)
acrescenta mais um dado: “Aceita, porém o caixeiro Irineu Evangelista como
auxiliar de contabilidade. Será Carruthers o homem do destino”. Aliás, Mauá, ao
escrever sua autobiografia, emprega a palavra destino para definir a força que
o arrastou desde essa época à realização de grandes empresas.
Carruthers, homem inteligente e educado, percebendo a dedicação e a
diligência de Irineu Evangelista de Sousa, apresentou-o ao mundo dos negócios
internacionais. Assim, através da sua tutela, Mauá, cresceu e prosperou. Em
tempo hábil dominou o inglês e aprendeu a calcular juros na moeda inglesa, a
libra esterlina. (Bianchi, 1987, p.27)
Sua sede de
conhecimento levou-o a estreitar relações de amizade com seu patrão, e este,
por sua vez, abriu-lhe, sem acanhamentos, sua biblioteca particular. Essa
aproximação, afirma Caldeira (2001, p. 117), transformou Carruthers de
professor em “companheiro de debates”, isto porque, “com o tempo, o caixeiro
que quanto mais trabalhava e estudava, mais queria trabalhar e estudar acabou
substituindo os ingleses em muitas conversas sérias. Irineu deixava-se levar,
embevecido pela sabedoria do patrão, e moldava cada vez mais seu comportamento
pelas lições”.
Irineu Evangelista de
Sousa possuía, aponta Caldeira (2001, p. 117), algum conhecimento de Economia
Política, adquirido através dos manuais de José da Silva Lisboa, o Visconde de
Cairu, que era uma leitura obrigatória entre os caixeiros portugueses. Porém, somente quando se
transferiu para a Carruthers & Cia cursou a disciplina completa, ministrada
pelo seu patrão durante os finais de semana e no período da noite. Assim,
através de Carruthers, Irineu Evangelista teve a oportunidade de conhecer a
Inglaterra sem ter saído do país. A sua formação, segundo Ruiz (1972, p. 13),
tornou-se assim, “tipicamente inglesa”.
Esta formação intelectual de
Irineu Evangelista ocorreu, entretanto, fora das instituições de ensino.
Enquanto aqueles que freqüentavam as escolas aprendiam humanidades, ele
estudava economia e política. E foi este conhecimento que contribuiu para a
formação de um homem tão incomum para a época.
Caldeira (2001, p. 145) afirma que Carruthers ensinou-lhe tudo, e,
após isso, lhe concedeu a independência para agir por conta própria,
confiando-lhe aquilo que lhe era mais caro: uma parte do capital da empresa.
A viagem à Inglaterra em 1840, segundo Ganns (1998, p. 29) foi um
marco decisivo na sua ascensão profissional. Durante sua visita àquele país,
conforme Caldeira (2001, p. 160), conheceu a forma mais avançada do
desenvolvimento material e comprovou, na prática, o que a teoria havia lhe
ensinado. Na opinião de Besouchet (1978, p. 28), esta viagem foi a responsável
pela passagem da carreira comercial à carreira industrial de Sousa, fazendo
surgir o novo personagem que seria o responsável pelo início do desenvolvimento
do país.
Movido pelo espírito público e na ânsia pelo desenvolvimento (Souza,
1998, p. 7), Mauá lançou-se em vários empreendimentos pioneiros: da metalurgia
a estradas de ferro, até o setor bancário. Foi responsável, direta ou
indiretamente, pela construção das primeiras ferrovias de norte a sul do país.
Assim ao buscar a compreensão de como ocorreu a educação de Irineu
Evangelista de Sousa, podemos perceber que, entre a instrução oficial oferecida
naquele período, e o aprendizado de Mauá, nada havia em comum. Aquela visava à
cultura literária impregnada de retórica que tinha por finalidade a formação da
elite, enquanto a educação recebida por Mauá, possuía fins práticos, seu
aprendizado estava relacionado com a sua atividade, sendo um instrumento útil
para o aperfeiçoamento de suas aptidões para o trabalho.
Desta forma a educação elitista visava a manutenção da ordem
vigente. A educação de Mauá foi igualmente elitista, porém nos moldes ingleses.
Por isso o projeto de desenvolvimento que ele tinha para o país defendia a
abolição dos escravos, a utilização do trabalho livre e uma economia fundada em
produção de mercadorias e não na agricultura. E esta proposta conflitava com os
interesses da elite agrária.
À medida que se aprofunda o estudo sobre Mauá, ele se revela uma
figura cada vez mais complexa e qualquer tentativa de sintetiza-la num único
adjetivo mostra-se temerária, pois indica o quão pouco ainda se conhece a seu
respeito. Em outras palavras, esta qualificação, ao invés de contribuir para o
esclarecimento sobre quem foi Irineu Evangelista de Sousa, constituir-se-ia num
obstáculo para o aprofundamento da pesquisa, pois o pesquisador correria o
risco de deter-se, assim, apenas na aparência do objeto distanciando-se de sua
essência.
Espera-se que esta investigação contribua para uma melhor
compreensão da história da educação brasileira no século XIX.
Referências:
BESOUCHET, L. Mauá e seu tempo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1978.
BIANCHI, R. Mauá empresário e político. São Paulo: Bianchi,
1987.
CALDEIRA, J. Mauá: empresário do Império. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
FARIA, A. Mauá, Irineu Evangelista de Souza, Barão de Mauá,
1813-1889. São Paulo: Nacional, 1958.
MURASSE, C. M. A educação para a ordem e o progresso do Brasil:
o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro (1856-1888). 2001. Tese (Doutorado
em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas.
RUIZ, R. Mauá, o patrono do Ministério dos Transportes. Rio
de Janeiro: Ministério dos Transportes, 1972.
SOUSA, I. E. de. Autobiografia. Prefácio e notas: Cláudio
Ganns. Rio de Janeiro: Topbooks; Estaleiro Mauá, 1998.
VAINFAS, R.(org.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
[1] Título da monografia do cruso de especialização em Educação Pública no Brasil, defendida em 16/05/2003.
[2] Especialista em Educação pública no Brasil, pela Universidade Estadual de Maringá.
[3] Doutora em Educação - professora do Departamento de Fundamentos da Educação – UEM.
[4] Um hectare corresponde a 10.000 m2.
[5] O sistema social existente no país fazia com que o trabalho fosse visto como algo humilhante e imposto pela escravidão. Durante séculos se estabeleceu esta crença de que o esforço físico era uma atividade própria para os escravos. Por isso o homem branco considerava degradantes tanto o trabalho físico quanto o trabalho da terra.
Nas camadas ativas da população existia uma evidente divisão de tarefas: dos negócios retalhistas cuidavam os portugueses; já as exportações e importações, ficavam à cargo dos ingleses, que se beneficiaram dos tratados comerciais acordados, primeiramente com Portugal e, depois, com o Brasil A outra face do país descansava sobre os senhores de engenho, os proprietários de minas, os fazendeiros, os criadores de gado e sobre os traficantes de escravos (BESOUCHET, 1978, p. 25).
[6] BESOUCHET, L. Mauá e seu tempo. Na p.181, a autora informa haver grande dúvida com relação ao nome do comerciante português que, em 1823, acolheu Irineu como caixeiro. Consta em alguns registros comerciais João Rodrigues Pereira de Almeida (nome utilizado por FARIA); em outros Antonio José pereira de Almeida. Continua BESOUCHET, “como a casa comercial nos registros comerciais dos almanaques do Rio de Janeiro, desde 1823 até 1829 aparecem os ‘Rodrigues de Almeida’ para depois desaparecer completamente, é justo perguntar se não se tratava de dois irmãos”.