A EDUCAÇÃO DA MULHER BRASILEIRA E SUA POSTURA NO ESPAÇO PÚBLICO E PRIVADO

Leni Trentim Gaspari**

 

Introdução

 

       Este estudo insere-se num trabalho mais amplo dentro da pesquisa que esta sendo realizada para o curso de Mestrado na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que se propõe por meio de um dialogo da História  com a História da Educação, restabelecer alguns elementos da história das mulheres.

       O enfoque aqui apresentado procura analisar como se processou no Brasil Colônia e Império a educação da mulher a partir das influências da mentalidade européia e das delimitações da ocupação do espaço público pelas mulheres. No imaginário da sociedade da época, a mulher deveria ser educada para a família com dedicação exclusiva as tarefas no âmbito familiar e na educação dos filhos, ocupando-a por inteiro e confinando-a ao espaço privado familiar.

       O trabalho procura mostrar como essa postura e imposição da sociedade masculina, ao longo da história, dificultou a participação da mulher nos espaços públicos ocupados pelos homens colocando-a em posição subalterna e negando-lhe a possibilidade de realização pessoal, como um “ser para si” e ao contrário,  fazendo dela um “ser para os outros”.

       A mobilização das mulheres para sua inserção na esfera pública torna visível sua aspiração em sair da exclusão a que estavam submetidas e da não aceitação de sua condição de ser submetida a falsos estereótipos. Assim, aos poucos vão ampliando e construindo sua identidade e conquistando o direito à instrução, favorecendo-lhes a abertura de um espaço profissional: o magistério.

       A pesquisa apresenta, nesta fase, entendimentos provindos do referencial teórico e específico no campo da História da Educação no Brasil Colônia e Império, a qual evoluirá posteriormente até o século XX, direcionando o enfoque para a educação das mulheres nas “Gêmeas do Iguaçu”1 , momento em que nos utilizaremos também das fontes primárias existentes nas cidades e dos depoimentos das mulheres dos anos 40 e 50, na tentativa de recuperar pelo estudo da memória, parte da história das mulheres da cidade no contexto em que as mesmas foram educadas.

 

O que se pensava sobre a educação das mulheres no Brasil Colônia

 

       A partir das idéias apregoadas pela maioria dos intelectuais masculinos ao longo dos séculos e que tão fortemente impregnaram os padrões europeus a respeito da educação feminina, construíram-se as bases da educação da mulher brasileira as quais  influenciaram nossa cultura por vários séculos.

       Nos meados do século XVI, na metrópole a educação da mulher era vista com descaso e como desnecessária no que se refere ao campo cultural, como podemos constatar em um trecho da obra do poeta português Gonçalo Trancoso, publicada em 1575:

 

Afirmo que é bom aquele rifão que diz: a mulher honrada sempre deve ser calada. E algumas mestras de moças, que são discretas, usam de manha pelas ensinar bem, dando-lhes búsios formosos que levam na boca quando se vão pera a casa,  dizendo-lhes que lhes fazem os dentes alvos, e cheirar bem o bafo; que os não tirem da boca até casa. E às vêzes lhes dizem que qual lhes achar um alfinete na rua, que lhe darão três novos por ele; que lho busquem com os olhos no chão, quando se forem, porque o achado é bom para elas. O qual fazem por que as moças não falem, nem alcem os olhos do chão quando forem pela rua, e se ensinem a não tomar brio de ver e ser vistas – o que a mim me parece muito bem. (MATTOS, 1958, p. 90).

 

       A obra de Trancoso foi muito lida na época pela sociedade masculina e influenciou fortemente a mentalidade dos homens, os quais determinavam a educação feminina. Mattos relata ainda, que Trancoso foi procurado por uma jovem da sociedade portuguesa que desejava muito aprender a ler e escrever, ao que ele lhe responde que como já passava dos vinte anos de idade, já estava casada e chegou essa idade sem saber ler deveria contentar-se agora com as contas do rosário. Entretanto manda-lhe um abecedário o qual deveria decorar, pela sua importância:

 

... A – quere dizer que seja amiga de sua casa; B – bemquista da vizinhança; C – caridosa com os pobres; D – devota da virgem; E – entendida no seu ofício; F – firme na fé; G – guardadeira de sua fazenda; H – humilde a seu marido; I – inimiga de mexericos; L – lial; M- mansa; N – nobre; O – onesta; P – prudente;  Q – quieta; R – regrada; S – sizuda; T – trabalhadeira; V – virtuosa; X – xá (simples); Z – zelosa da honra.  ( MATTOS, 1958, p. 91)

 

       Percebemos nos textos de Trancoso que a mentalidade que predominava no imaginário masculino era a de manter a mulher com pouca instrução, sem acesso à arte de ler e escrever e restritas ao espaço privado doméstico. Seus escritos nos incitam a pensar a privatividade exercida no interior da sociedade portuguesa no século XVI, a fim de assegurar permanência da mulher no espaço fechado do lar e quando em contato com o espaço público, suas atitudes deveriam de ser de receios, cuidados e humildade. Desta forma, seguindo um padrão de comportamento moralista, tornava-se mais fácil que se impusesse à supremacia masculina.

       Essa mentalidade é a mesma que se impõe às mulheres brasileiras no período colonial, poucas mulheres vieram ao Brasil no inicio da colonização. A primeira mulher branca de que se tem noticia chegou ao Brasil em 1534. posteriormente vieram outras sobre as quais Alcântara Machado escreve: “... Acostumada à sujeição e à  obediência, a mulher, pupila eterna do homem, não muda de condição ao passar do poder do pai para o poder do marido ... Vive enclausurada em meio das mucamas, sentada no seu estrado, a coser, a lavar, a fazer renda e a rezar as orações: os bons costumes em que se resume a sua educação”. (THOMÉ, 1968, p. 44)

       Consideramos relevante destacar aqui a mentalidade dos nossos índios que foram os primeiros a reivindicar a instrução feminina ao Padre Manoel da Nóbrega, pedindo que ensinasse suas mulheres a ler e escrever, como aponta Ribeiro:

 

“O indígena considerava a mulher uma companheira, não encontrando razão para as diferenças de oportunidades educacionais. Não viam, como os brancos os preveniam, o perigo que pudesse representar o fato de suas mulheres serem alfabetizadas. Condená-las ao analfabetismo e a ignorância lhes parecia uma idéia absurda. Isto por que o trabalho e o prazer do homem, como o da mulher indígena era considerados eqüitativos e também socialmente úteis.” ( 2000, p. 80)

 

       Essa iniciativa constituíu-se numa idéia inédita e original para Nóbrega, Tomé de Souza e para os outros homens formadores na mentalidade da Europa Medieval que vedavam ao sexo feminino qualquer instrução além da doutrina cristã e das artes domésticas.

       Os mesmos índios que a sociedade complexa considera “selvagens” e desvaloriza sua cultura, deram-nos na história da educação feminina, um belo exemplo de valorização da mulher, na simplicidade natural de sua forma de ver o mundo, entretanto numa visão isenta de preconceitos não estabelecendo diferenças ou tratamentos desiguais numa relação essencial entre o “eu“ e o ”outro”, fato que fica pouco evidenciado na relação entre os homens cultos e brancos que instituíram padrões de modelos de comportamento para a época. 

       É negada a autorização para tal iniciativa pela Rainha de Portugal, Dona Catarina, por entender a iniciativa como ousada e que não seria necessário oferecer educação as mulheres “selvagens” de uma “colônia distante que só existia para o lucro português” (Ribeiro, 2000, p. 81). A negação partiu de uma mulher, entretanto é preciso entender o contexto no qual ela vivia na metrópole onde não havia escolas para meninas. Algumas recebiam aulas em casa e na sua maioria eram analfabetas. O Brasil estava pedindo mais do que as próprias filhas da nobreza tinham e a Rainha era fruto deste momento histórico.

       E notório que, desde os tempos coloniais, as influências das instituições sociais e o código de valores e de comportamentos trazidos da Europa, marcaram a vida e a postura da mulher brasileira atrelada a aceitação da sua permanência no interior do domicilio. Entretanto, nos estudos de Ribeiro, evidenciam-se as qualidades inatas (porém sufocadas) das mulheres como uma força oculta no interior de cada uma que é colocada à mostra no momento que se faz necessário. Com iniciativa e coragem, algumas mulheres ultrapassam a esfera doméstica para a pública:

 

... Quando o domínio dos portugueses era ameaçado, elas assumiam cargos tidos como masculinos, ocupando outros espaços. Nesses períodos, aprendiam rapidamente a como administrar uma propriedade ou mesmo um território político. (...) Das Capitanias doadas no século XVI, as únicas que deram certo, São Vicente e Pernambuco foram governadas por mulheres. (RIBEIRO, 2000, p. 84)

 

       Entende-se que administrar uma Capitania numa terra estranha, inóspita e repleta de dificuldades foi um grande desafio àquelas mulheres consideradas “frágeis” e educadas para a passividade, para o silêncio e para submissão, atributos que caíam por terra no momento em que as circunstâncias exigiam uma presença decisiva no campo da atuação administrativa. Ainda que desprovidas de instrução, demonstraram serem fortes o suficiente para resolver os problemas surgidos, fora do espaço doméstico. 

       A ausência da sociedade da época, pela preocupação com a educação da mulher, denotam as relações de poder a que estavam submetidas tendo sido expostas à enganação e à exploração por não saberem ler e escrever. Muitas foram espoliadas e roubadas pelos homens da família, por meio de falsificação de documentos, mostrando que os interesses econômicos estavam acima da dignidade e do respeito à mulher.

       Os conventos no Brasil constituíram-se em espaços nos quais a mulher teve acesso a educação, considerando que não havia um sistema formal da educação feminina. Entretanto nos séculos iniciais da história do nosso país essa alternativa não era possível, pois à fundação de conventos só irão acontecer no século XVII.

       Várias razões retardaram tal empreendimento: era necessário grande investimento financeiro o qual a coroa não dispunha, a preocupação com a política de povoamento da Colônia para proteção das fronteiras, além da mestiçagem que se ampliava de forma rápida sem o “contrapeso de uma população branca de raízes lusitanas”2 favoreceram o retardamento da construção de conventos femininos a fim de que as mulheres brancas se integrassem a sociedade pela sua capacidade reprodutiva.

       Fica muito clara a ausência de liberdade de escolha por parte das mulheres, tratadas como seres desiguais servindo a propósitos da coroa e da sua política demográfica, bem como a manutenção da mentalidade de mantê-las no lar, o qual era o seu mundo próprio com a função de procriar.

       Os conventos foram para as mulheres, espaços contraditórios: num momento são impedidas de entrar, em outro, são levadas a revelia. Constituíam-se em alternativas para que a mulher pudesse estudar, ainda que de forma limitada ou fugirem de casamentos indesejados, entretanto, serviram de suporte para trancafiar mulheres sem vocação, “prisões místicas” como define Ribeiro porque lá se colocavam às mulheres indesejadas pelos pais ou maridos por questões de partilhas de bens ou para resolver problemas de honra em casos de moças ou mulheres que “erravam”. (2000, p. 88)

       Ao final do século XIX, as mulheres freiras participaram de atividades comuns a sociedade, no campo da educação, da saúde e assistência social constituindo-se no grupo de mulheres, pioneiras no exercício de atividades profissionais num tempo em que as mulheres eram educadas para permanecer no recinto do lar.

 

Educação feminina no Império: avanços ou novos mecanismos de opressão

 

       Chegamos ao século XIX, 1808, sem que ocorressem muitas mudanças com a chegada da Família Real, e as inovações culturais feitas por Dom João VI, as quais não provocaram de imediatas alterações sobre a educação feminina, numa dimensão ampla.  São criadas algumas “... escolas leigas para as meninas da elite e são contratadas preceptoras de Portugal, da França e, posteriormente, da Alemanha para educá-las em casa.” (Aranha, 1994, p. 85) Para essas moças, pertencentes a grupos sociais privilegiados, os conhecimentos que se procurava transmitir estavam ligados ao ensino da leitura, escrita, doutrina cristã e noções básicas da matemática.

       Entretanto, a preocupação maior era o desenvolvimento para as habilidades artísticas nos trabalhos manuais e no envolvimento com a organização da casa e cuidados com o marido, ou seja, a preparação para ser esposa e mãe dedicadas que ouvissem muito, falassem pouco e se, instruíssem o mínimo necessário como ditava um famoso provérbio português: “uma mulher já é bastante instruída quando lê corretamente as suas orações e sabe escrever a receita da goiabada. Mais do que isto seria um perigo para o lar” (Cravo, 1973, p. 11)

       Nesta condição nem os documentos da época, inventários e testamentos a mulher poderia assinar, necessitando pedir aos homens que por ela o fizessem “por ser mulher e não saber ler”.

       Em que pese à ideologia dominante na época sobre a educação das mulheres e sobre sua postura na família e sociedade, muitas ousaram romper os paradigmas estabelecidos buscando integrar-se em acontecimentos que a História nos mostra, influenciando e tomando parte em diversos momentos, ultrapassando assim do espaço doméstico para o público e vencendo barreiras que tolhiam suas iniciativas.

       A exemplo isso, registra-se a atitude corajosa de Maria Quitéria que participou de diversas batalhas, a revelia de seu pai, pela Independência:

 

“... soldado Medeiros como era conhecida Maria Quitéria sobressaiu-se bravamente na defesa da foz do Paraguassu. Dirigindo um grupo de heróicas mulheres baianas, impediu o desembarque das tropas portuguesas. Ao ser condecorada pelo Imperador, com a Insígnia dos Cavalheiros da Imperial Ordem do Cruzeiro, faz a seguinte solicitação: ‘já cumpri o meu dever como brasileira agora peco ao meu Imperador uma graça: uma ordem para que meu pai me perdoe a desobediência por ter trocado a minha casa pelo campo de luta’. Esta solicitação de Maria Quitéria vem enfatizar a sujeição, a dependência em que vivia  a  mulher brasileira. Depois de enfrentar corajosamente lutas difíceis para emancipar sua pátria, temia enfrentar  sei pai.” (Cravo, 1973, p. 13)

 

       Ilustramos o texto com este exemplo procurando mostrar que a mulher embora impedida de instruir-se, manifestar-se e realizar-se como “ser para si”, dentro das possibilidades concretas existentes, procurou imprimir à sua “marca” mesmo enfrentando a autoridade masculina e os preconceitos sociais, de uma sociedade que só a via como ser destinado ao casamento e as funções do lar.

       Assim, como Quitéria, outras mulheres adentraram esse espaço público destinado somente para os homens, e este posicionamento nos remete a relevantes análises de Hannah Arendt sobre as esferas privada e pública. A autora aponta que no mundo moderno a esfera social e política recaem uma sobre a outra desaparecendo o abismo entre o público e o privado, na medida em que os interesses privados passam a assumir relevância pública. (ARENDT, 1989, p. 42 e seguintes).

       Após a Independência, a Assembléia Constituinte de 1823 incluía um projeto de instrução o qual instituía o ensino a juventude brasileira dos dois sexos. A primeira regulamentação das escolas públicas primárias foi assinada pelo Imperador D. Pedro I em 15 de outubro de 1827, que facultava no artigo 11 a criação de escolas para meninas, nas cidades e vilas mais populosas, nas quais os presidentes em Conselho, julgassem necessário este estabelecimento com as seguintes disposições :

 

Art. 12 – As mestras além do declarado no art. 6, com exclusão das noções de geometria, e limitando a instrução aritmética só às suas quatro operações, ensinarão também as prendas que servirão a economia doméstica; e serão nomeadas pelos presidentes em Conselho, aquelas mulheres, que sendo brasileiras e de reconhecida honestidade, se mostrarem com mais conhecimentos nos exames feitos na forma do art. 7. (VIDAL, 1996, p. 31)

 

       A mesma lei ordenava igualdade de salários para mestres e mestras. Entretanto surge aqui sérias e relevantes dificuldades: como e onde encontrar tais mestras se a ideologia da época era manter as mulheres com pouca ou nenhuma instrução? Por outro lado como convencer a resistência dos pais para levar suas filhas a escola, considerando que achavam necessário que a menina soubesse apenas as prendas domésticas e a escrever seu nome?

       Vidal (1996), constata em seus estudos sobre a educação da mulher que bastava a mulher deter qualidades morais, honestidade e formação cristã e desta forma obter vaga para o ensino das primeiras letras às meninas, considerando que o mesmo ensino não incluía informações aritméticas superiores as quatro operações e que as professoras reproduziam na escola os conhecimentos adquiridos na vida prática.

       Nesta perspectiva, percebe-se que a educação feminina no século XIX no Brasil ainda encontrava-se fortemente vinculada a mentalidade recebida da herança portuguesa, com os mesmos preconceitos e limites impostos pela política reinol, na qual o acesso a instrução ainda era considerado necessário apenas no sentido da preparação para o casamento, devendo constituir-se este,  a maior aspiração da mulheres. 

       É nesse contexto histórico que é criada a escola normal no Brasil, na década de 30 a 40, do século XIX, em conseqüência do Ato Adicional de 1834. Os pretendentes a uma vaga na escola normal deveriam ser portadores de idoneidade moral como ponto mais relevante do que sua formação intelectual. Isto se evidencia no Art. 4º. da Lei da Criação da Escola Normal de Niterói, a primeira a iniciar suas atividades na década de 30, o qual determinava que “... para ser admitido à matricula na Escola Normal requer-se: ser cidadão brasileiro, maior de 18 anos, com boa mogerização; e saber ler e escrever.”  (VILLELA,  2000, p. 106)

              Mediante esta exigência, com ênfase na mogerização demonstrava-se a preocupação com as concepções ideológicas dos futuros educadores; em relação à questão “ser cidadão” pode-se questionar: qual cidadão? Quem era considerado cidadão neste período onde a exclusão era evidente. Considerando que os escravos não eram considerados pessoas, homens livres e pobres eram destituídos de direito, e as mulheres também não tiveram acesso às primeiras escolas normais.

       Em 1862, em Niterói, a Escola Normal recriada e com muitas inovações começa a funcionar agora com a presença feminina, porém estudando em dias alternados com os meninos e com currículos diferentes pela concepção já dominante na época, que as meninas não tinham desenvolvimento intelectual no mesmo nível dos meninos necessitando assim sua formação ser voltada ao casamento e não com uma preocupação de seu aperfeiçoamento e realização pessoal. No final do século, quando ocorre a introdução do ensino misto (o que provoca escândalo na sociedade) é que o currículo passa a ser unificado.

       As escolas normais abrem novas possibilidades às mulheres solteiras, como forma de trabalhar por questão de sobrevivência para aquelas que não conseguiram se casar e assim não se tornar um peso para a sociedade.  Além disso, o exercício do magistério era visto como prolongamento das funções maternas e por isso aceitável como profissão às mulheres. Agora as mulheres passam a ser necessárias, pois as classes deveriam ser da responsabilidade de senhoras “honestas”. Neste sentido a mulher passa a ser essencial na esfera pública e algumas ações que lhes eram pertinentes no espaço privado irão ampliar-se ao público pela sua ação educativa junto às crianças.

 

No século XIX, transformações econômicas e sociais tornaram as fronteiras entre o público e o privado menos dicotomizadas, mas persistiram as representações diferenciadas dos papéis masculinos e femininos na esfera pública. Para as mulheres do século XIX o público era o lugar onde se corria o risco de perder a virtude. Por isso, as mulheres ‘virtuosas’ deveriam ser cuidadosas e discretas no gestual e na vestimenta com o intuito de não serem confundidas com uma ‘mulher pública’. 3 Desta forma, para as mulheres,  público e desgraça estavam associados. (RONCAGLIO, 1997, p. 66)

 

 

       As escolas femininas tinham a preocupação de desenvolver determinadas habilidades manuais com o objetivo de facilitar a entrada das meninas das classes populares no mercado de trabalho, a partir da aquisição de determinadas habilidades manuais coerentes  com o que se concebia como “atividades relacionadas à natureza da mulher”. Essas habilidades deveriam estar vinculadas ao serviço doméstico, na qualidade de esposa ou mãe, de criada, ocupada em atender seus patrões, ou ainda, como operária  da industria têxtil, reproduzindo na fábrica, os costumes recebidos no espaço privado do lar.

       Para as moças de alto poder aquisitivo a freqüência as escolas normais “... continuava atrelada aos princípios veiculados de ela ser necessária não para seu aperfeiçoamento ou satisfação, mas para ser esposa agradável e mãe dedicada...” (ALMEIDA, 1998, p. 62). Percebe-se aqui, muito presente as idéias dos filósofos do século XVIII, representadas pela mentalidade de se educar as mulheres para se educar os homens e mais ainda a idéia que a mulher deve existir para a família e para o homem.

       Entretanto, é preciso reconhecer que a entrada feminina nas escolas normais imprimiu fortes possibilidades de acesso a instrução pública, favorecendo a abertura de um espaço profissional às mulheres. Espaço este, que foi conquistado, pela recusa das mulheres à desigualdade, a passividade e a inoperância a que estavam submetidas até então.

       Comprova-se isto pelo fato de que o número de alunas nas escolas normais aumenta gradativamente habilitando mais mulheres do que homens para exercerem o magistério. Louro (1997) entende que este fato esta provavelmente ligado ao processo de urbanização e de industrialização do país que ampliou as oportunidades de trabalho aos homens e ocasionou o movimento que daria origem à “feminização do magistério”.

 

A feminização do magistério primário no Brasil aconteceu num momento em que o campo educacional se expandia em termos quantitativos. A mão de obra feminina na educação principiou a revelar-se necessária, tendo em vista, entre outras causas, os impedimentos morais dos professores educarem as meninas e a recusa a co-educação dos sexos, liderada pelo catolicismo conservador. (ALMEIDA, 1998, p. 64)

 

       A inserção profissional das mulheres não ocorreu, entretanto sem os conflitos que são próprios das mudanças e do surgimento do novo. Resistências, críticas e concordâncias. Vozes se levantam para argumentar seu ponto de vista. Para alguns era difícil e até insensato aceitar que as mulheres consideradas habitualmente como portadoras de pouca competência intelectual ou racionalidade, como apregoava Kant, pudessem assumir a educação das crianças.  Assim, o processo de feminização do magistério não foi uma concessão e sim uma conquista.

       Por outro lado havia aqueles que entendiam que a mulher tinha por “natureza” facilidade e inclinação para o trato com as crianças e que o magistério deveria ser visto como natural e próprio a sua condição feminina, portanto, função adequada às mulheres. Neste contexto à mulher caberia então a responsabilidade da reprodução e a educação das futuras gerações o que não deixou de ser uma participação no campo do poder: “Dessa forma, viabilizavam um cruzamento entre o público e o privado dentro das condições concretas apresentadas na época. Neste plano simbólico, talvez possa ter-se a explicação da grande popularidade do magistério entre as mulheres e, no plano objetivo, a sua condição representada pela única opção possível para elas dentro do contexto social do período.” (ALMEIDA, 1998, p. 69)

       Entretanto esse pensamento de abertura de espaço para a mulher no mundo além do recinto doméstico foi contrariado por outras correntes de pensamento, cujos teóricos defendiam que a mulher deveria permanecer em seu espaço “naturalmente” doméstico sem participar das transformações que se operavam na sociedade.

 

As perspectivas da corrente positivista viam a família como uma sociedade hierárquica e o eixo básico da preparação dos cidadãos para a pátria. Em função disso e pela ligação ‘natural’ da mulher à família era necessário que a mesma fosse mantida exclusivamente no âmbito doméstico para cuidar somente das tarefas domiciliares e da educação dos filhos,  sem se preocupar em participar da vida pública e muito menos em ter acesso a uma vida profissional. (NADER, 2001, p. 94)

 

       Todavia a história mostra que na trajetória feminina da mulher brasileira, as responsabilidades da maternidade e a vida em família não foram suficientes para satisfazer os projetos de vida das mulheres. Somando-se a isso as transformações que ocorreram na sociedade no final do século XIX, como aponta Nader  obra mencionada anteriormente, com a redefinição de conceitos a nível político, pela ampliação dos direitos à cidadania, o nível econômico fez implodir no lar a necessidade de expansão profissional da mulher e no  ideológico as mulheres conseguiram implantar um movimento que desafiou os componentes alterando os padrões do seu papel na família e tornando-as efetivamente participantes de todo o processo social e histórico da humanidade.

 

Considerações Finais

 

       Pelo exame das questões referentes a inserção do segmento feminino no espaço público procurou-se identificar a problemática das relações sociais da época do Brasil Colônia e Imperio, mediatizadas por uma reflexão acerca da educação que as mulheres recebiam e pela discriminação e intolerância a que estavam submetidas. Pouco a pouco elas vão conseguindo alterar esse processo, revendo sua posição na esfera pública e privada, construindo uma nova identidade com vistas à promoção da figura feminina.

       Homem ... mulher! Espaço público... e espaço privado!  Dicotomias entre o masculino e o feminino? Diferenças que não devem ser vistas ou entendidas a partir da desigualdade e do desmerecimento de um ou de outro. E necessário que se veja, que se reconheça os valores as particularidades do que é próprio de cada sexo, percebendo isso como pontos positivos para uma vida em comum, amparada pelo respeito mútuo ao espaço de cada um.

       Espaços públicos e espaços privados podem e devem ser ocupados por ambos os sexos numa relação de respeito às diferenças sem preconceitos e estereótipos como nos diz Marodin: igualdade não significa fazer as mesmas tarefas o importante é o sentido de reciprocidade  onde se reconhecem que as respectivas contribuições tem valor e fazem parte de um equilíbrio. Assim a verdadeira igualdade entre homens e mulheres se faz pelo reconhecimento das diferenças e a consciência de sua complementaridade.


NOTAS

 

1 Denominação popular das cidades de União da Vitória e Porto União, após o conflito do Contestado, 1916.

2   A esse respeito, ver Nunes In: Priore, M. D. (org.) Bassanezi (coord.) História das Mulheres no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1997, p. 484.

3   “Mulher Pública”: termo usado por Perrot no sentido de depravada, debochada, lúbrica, venal – publica é uma “criatura” mulher comum que pertence a todos. IN: Perrot, M. Mulheres Públicas. trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 1998, p. 7.

      

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

 

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* Professora do Departamento da FAFI.

* Aluna do Curso de Mestrado em Educação da UEPG – Linha de Pesquisa Educação,  História e Memória.

   Orientadora Profª. Dra. Teresa Jussara Luporini.