O SURGIMENTO DA UNIVERSIDADE E O PROJETO BURGUÊS DE EDUCAÇÃO NO BRASIL

Paulino José Orso[1]

 

O surgimento da universidade brasileira ocorreu tardiamente. Foi criada somente em 1934. Além do Brasil ser o último país das Américas a criar o ensino superior de tipo universitário, quando a universidade foi criada já existiam mais de cem instituições desse tipo no restante da América. No século XVI foram criadas as Universidades de São Marcos, em Lima, no Peru e as Real e Pontifícia de São Domingos, no México; no século XVII foram criadas na Guatemala, Argentina, Bolívia e Estados Unidos; no século XVIII, na Venezuela, Chile e Cuba; no século XIX, no Uruguai, Colômbia, Equador, Paraguai e Honduras. Em 1920, ainda não havia sido criada a universidade no Brasil e na América do Norte já existiam 76 e na América do Sul mais 26, totalizando 102 universidades[2].

A questão principal, entretanto, não está propriamente no surgimento tardio da universidade no Brasil; está nos motivos que levaram a isso e nos motivos que levaram à sua criação nesse momento.

Se observarmos bem, o atraso não ocorreu devido a ausência de projetos que propusessem sua criação, nem propriamente à dificuldade financeira. Entre a primeira proposta de criação da universidade e sua criação de fato passaram-se 351 anos. A primeira iniciativa neste sentido partiu do jesuíta Marçal Beliarte, ainda no Período Colonial, em 1592. Depois desta, foram realizadas outras dezenas de propostas, mas também acabaram malogradas. Somente durante o Império foram apresentados 42 projetos com a finalidade de criar a universidade. Ou seja, determinados setores da sociedade brasileira estavam conscientes da necessidade de se criar esta instituição, mas acabavam sofrendo a pressão de outros setores que discordavam do modelo a ser adotado e, em função disso, impediam sua concretização.

Apesar de que a idéia de se criar a universidade no Brasil já estivesse presente durante a Colônia, é durante o Império, depois da Independência, que a idéia adquire maior força. Entretanto, a maioria dos projetos que propunham a criação da universidade partiam de iniciativas oficiais, de acordo com os modelos coimbrão e napoleônico. Contudo, esses modelos eram criticados principalmente pelos liberais, que os acusavam de serem centralizadores e avessos aos ideais de liberdade, visto que propunham a extinção das faculdades provinciais ou a subordinação à Corte[3]. Com isso, fortalece-se o grupo dos que se opõem à criação da universidade. O pensamento dito centralizador transformava-se no maior obstáculo à universidade. Como o modelo germânico, que defendia a autonomia, a liberdade de pensamento e opunha-se ao ultramontanismo, era defendido pelos liberais como único modelo alternativo a esses, também encontrava oposição, ganhou força a defesa da liberdade de ensino. Isto fez com que a universidade fosse aceita apenas na medida em que a descentralização era permitida. Como diz Roque Spencer Maciel de Barros,

 

a idéia da liberdade de ensino incorpora a aspiração descentralizadora por ser ainda mais genérica. Se se decreta o ensino livre, se se reduz ao mínimo a intervenção do governo central no campo da educação, automaticamente se obtém a descentralização do ensino e em termos mais amplos do que se imaginava outrora: a liberdade de ensino é, também, uma forma de valorização da província[4].

 

Dessa forma, com ou sem universidade, o fundamental passou a ser a defesa do ensino livre.

Esta, porém, não comportava um sentido unívoco. Os “liberais clássicos” diziam defendê-la por coerência doutrinária decorrente do “direito natural”, como garantia da liberdade de consciência e de afirmação da individualidade; os positivistas, porque identificavam nela a condição necessária à regeneração social e à instalação do estado definitivo, onde a ciência positiva imperaria. Quanto aos católicos, convictos de possuírem a verdade absoluta, eram favoráveis enquanto não se opunha à verdade revelada e lhes permitia abrir escolas e propagar a doutrina ultramontana. Dessa forma, a discussão se deslocou e passou a travar-se uma disputa entre os que defendiam a criação da universidade e os que defendiam o ensino livre.

Os liberais, deslocando a educação do conjunto das relações sociais, ao invés de conceberem-na como parte da sociedade, atribuíam a ela uma função quase que absoluta e transformavam-na na responsável pelo sucesso ou fracasso dos indivíduos na sociedade; atribuíam à educação superior um papel fundamental e viam na universidade uma importância decisiva para “elevar o país ao nível do século”.

Júlio de Mesquita Filho, que militou nas Ligas Nacionalistas defendendo os valores nacionais e que foi um dos principais idealizadores da universidade brasileira, via nela o meio de realizar uma “revolução” espiritual na sociedade, a condição para “ocidentalizar” o país, alcançar os destinos comuns já atingidos pelos países mais avançados e promover a “adaptação definitiva da democracia no Brasil[5].  Mas, para que isso acontecesse, diziam que era necessário acelerar a marcha, cumprir rapidamente as etapas e integrar o país à humanidade.

Para Armando de Salles Oliveira, cunhado de Mesquita Filho e também ex-membro das Ligas Nacionalistas, a universidade também era um meio de implantar a democracia, de livrar o país do comunismo e de garantir a unidade nacional. Dizia: ‘Não há quem não tenha o espírito cheio de dúvidas sobre a sorte que nos espera: contando com a nossa imprevidência e a nossa displicência os inimigos da sociedade se armam nas trevas’[6].

Fernando de Azevedo via na universidade um meio de diluir os antagonismo sociais. Afirma que,

 

‘sendo a educação pública, o caráter democrático do processo de recrutamento das futuras elites estaria como que automaticamente assegurado. Não havia mais a constante reprodução das oligarquias porque, por meio da educação universitária, a barreira das classes seria vencida, qualquer um podendo ascender à condição de membro da elite pala demonstração do mérito. (...) Vistas as coisas desta maneira, a universidade cumpre função política em dois níveis: permite a compatibilização entre elite e democracia; e recruta, na totalidade do espectro social, para formá-los segundo os mais afinados padrões de saber e discernimento, os futuros membros da elite dirigente’[7].

 

Para estes intelectuais, a educação era o principal problema da sociedade brasileira e a ausência da universidade a principal causa. Eles a concebiam como um autêntico centro intelectual e ético, que irradiaria de seu seio as forças espirituais capazes de renovar incessantemente as energias do país. Acreditavam que o estado de “anarquia” gerado com a derrota das elites cafeicultoras em 1930 e 1932 era transitório e que uma vez superado, a evolução recobraria seu curso normal, no sentido da democratização do país e da realização dos ideais liberais. Tratava-se, portanto, de “restaurar-se na plenitude, o prestígio de São Paulo na política brasileira”[8].

Assim, aproveitando o fato de Armando de Salles Oliveira estar interventor no Governo do Estado de São Paulo, em 1934, um segmento da elite paulistana, ligado à oligarquia cafeeira e ao jornal O Estado de S. Paulo, criaram a Universidade de São Paulo com sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de acordo com os seguintes pressupostos:

 

Considerando que a organização e o desenvolvimento da cultura filosófica, científica, literária e artística constituem as bases em que se assentam a liberdade e a grandeza de um povo; considerando que somente por seus  institutos de investigação científica de altos estudos, de cultura livre, desinteressada, pode uma nação moderna adquirir a consciência de si mesma, de seus recursos, de seus destinos; considerando que a formação das classes dirigentes, mormente em países de populações heterogêneas e costumes diversos, está condicionada à organização de um aparelho cultural e universitário, que ofereça oportunidade a todos e processe a seleção dos mais capazes; considerando que em face do grau de cultura já atingido pelo Estado de São Paulo, com Escolas, Faculdades, Institutos, de formação profissional e de investigação científica, é necessário e oportuno elevar o nível universitário a preparação, do profissional e do cidadão, decreta: (...)[9].

 

Os objetivos são claros e não escondem que a universidade deveria estar voltada para a formação da elite e para a seleção dos mais capazes. Ao ser criada a USP, Salles Oliveira afirmava: “Dispomos agora de instrumento através do qual se prepararão as nossas elites dirigentes. Daqui continuarão a sair (...) homens que se destinam ao exercício da inteligência aplicada e que constituirão, sobretudo, os grupos de profissionais e do funcionalismo”. Mas não era só isso. Tinha presente a intenção de criar “um verdadeiro cérebro, integrando a ciência e a técnica, para forjar uma elite intelectual capaz de orientar todas as classes sociais”. “A Universidade de São Paulo”, afirmava ele, “é a primeira semente do Brasil novo”[10].

Desse modo, inspirada numa cultura liberal, a Universidade de São Paulo não estava voltada para o conjunto da população, nem apenas para a cultura, para a ciência e para a técnica, mas “para servir de centro de irradiação da doutrina da Unidade Nacional, paladina dos princípios democráticos, capazes de formar uma elite de dirigentes, compenetrados dos seus deveres para com a Pátria e para com a Sociedade”. A universidade deveria ser a “Alma Mater” que inspiraria os estudantes durante toda vida[11]; deveria harmonizar e unificar os interesses antagônicos, regular as tensões de classes, converter as lutas em comunhão e harmonia, formar e reciclar as elites dirigentes, formar quadros e devolver a São Paulo a liderança na direção dos destinos do país.

Noutras palavras, a criação da universidade não fazia parte de um projeto tão “neutro” e “desinteressado” como queriam dar a entender seus idealizadores.

Com a criação da universidade, iniciava-se um novo período na história educacional brasileira. Ela, não era um fato isolado. Além do Manifesto dos Pioneiros (1932) e da fundação da USP (1934), também ocorreu a fundação do Ministério da Educação e Saúde (1930), a Reforma Francisco Campos (1931), a fundação da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (1933)[12], a criação da Escola Paulista de Medicina (1933), a fundação da Faculdade de Filosofia Sedes Sapientiae (1933) e a criação da Universidade do Distrito Federal (1935). A grande preocupação era formar e reciclar as elites para que, depois de “derrotadas pelas armas”, pudessem recuperar o poder e a hegemonia perdidas na Revolução de 30 e imprimir a direção do país.

A reforma educacional, a reforma política e a universalização do voto representavam o “roteiro da revolução” de Júlio de Mesquita Filho, a nossa “revolução gloriosa” ou então, a “revolução dentro da ordem”, de que falava Florestan Fernandes. Assim, promover-se-ia uma revolução pacífica, democrática, através do voto, completada pela reforma educacional.

Mas, a criação da USP, que deveria ser o modelo para todas as demais universidades que poderiam ser criadas a partir daí, só se completaria com a criação da FFCL, que deveria ser o núcleo agregador e articulador da universidade. Todos os alunos deveriam passar por ela para receber a formação humanística e a concepção de mundo. Ela seria a responsável pela formação dos futuros formadores. Deste modo, formando-se a elite espiritual, dela irradiar-se-ia pelos que posteriormente iriam atuar nos primeiros e segundos graus, atingindo assim, por extensão, toda a sociedade.

Com esta finalidade, os idealizadores da USP foram em busca das “eminentes missões de professores estrangeiros”.

 

Para por em funcionamento a Universidade e a sua peça básica, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (...) era necessário buscar mestres europeus, convenientemente formados, portadores de uma tradição intelectual  que não tínhamos, de métodos de trabalho que, em função do autodidatismo imperante, não se conheciam. Foram as dezenas de mestres estrangeiros que os colaboradores de Júlio de Mesquita Filho buscaram na Europa que permitiram que o sonho, ao menos parcialmente, se tornasse realidade[13].

 

Mas, não foram convidados quaisquer professores. Mesquita Filho, diz:

 

‘Éramos irredutivelmente liberais. Tão liberais, que nos julgávamos na obrigação de tudo fazer para que o espírito em que se inspirasse a organização da Universidade se mantivesse exacerbadamente’. E, fiel a essa idéia (e com muito tato), para as cadeiras de que dependia diretamente a formação espiritual dos estudantes, isto é, para aqueles estudos que nunca são inteiramente ‘neutros’, preferiram-se mestres franceses, afinados com a tradição ocidental e que repudiavam os credos fascista e nazista[14].

 

Ou seja, através da criação da universidade, intentava-se criar uma espécie de aparelho ideológico para formar, reciclar as elites, formar intelectuais de acordo com a concepção de mundo, de homem e de sociedade liberais e de acordo com os interesses burgueses, para, nas palavras de Mesquita Filho, “consolidar a democracia no Brasil” ou nas palavras de Antônio Carlos “fazer a revolução antes que o povo a fizesse”.

Creio que, apesar da importância demasiada que a elite paulistana atribuía à educação, não resta dúvida de que por trás da criação da universidade, mais do que a implementação de um projeto de educação, havia o interesse na consolidação de um projeto burguês de sociedade ou então, através da educação tratava-se de viabilizar esse projeto de sociedade[15].

 

BIBLIOGRAFIA

BARROS, Roque S. M. de. A ilustração brasileira e a idéia de universidade. São Paulo: Convivio, 1954.

­­­______. Júlio de Mesquita Filho e o pensamento liberal. In: BARROS, Roque S. M. de. Estudos Liberais. Londrina: Editora da UEL, 1997.

______. Júlio de Mesquita Filho e a Universidade. BARROS, Roque S.M. de. Estudos Brasileiros. Londrina: Editora da UEL, 1997.

BONTEMPI Jr., Bruno. A cadeira de História e Filosofia da Educação da USP entre os anos 40 e 60: um estudo das relações entre a vida acadêmica e a grande imprensa. São Paulo: PUC, 2001. Tese de doutorado.

CAMPOS, Ernesto de Souza. História da Universidade de São Paulo. São Paulo: 1954.

CAPELATO, Maria Helena & PRADO, Maria Lígia. O bravo matutino. Imprensa e ideologia: o jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: Alfa-Omega, 1980.

FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. Universidade & Poder: análise crítica/ fundamentos históricos: 1930-45. Rio de Janeiro: Acihiamé, 1980.

MESQUITA FILHO, Júlio de. A Crise Nacional. São Paulo: Seção de Obras de “O Estado de S. Paulo”, 1925

PACHECO E SILVA, A. C. Armando de Salles Oliveira. São Paulo: Livraria Editora Martins S. A, 1966



[1] Doutor em História e Filosofia da Educação pela Unicamp e professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste.

[2] Cf. CAMPOS, Ernesto de Souza. História da Universidade de São Paulo. São Paulo: 1954, pp. 20, 25.

[3] Nesse momento, o liberalismo lutava contra a intervenção do governo na economia e na sociedade; defendia o mínimo de intervenção possível.

[4] BARROS, Roque S. M. de. A ilustração brasileira e a idéia de universidade. São Paulo: Convivio, 1954, p. 230.

[5] FILHO, Júlio de Mesquita. A Crise Nacional. São Paulo: Seção de Obras de “O Estado de S. Paulo”, 1925, p. 3. Cf. também BARROS, Roque S. M. de. Júlio de Mesquita Filho e o pensamento liberal. In: BARROS, Roque S. M. de. Estudos Liberais. Londrina: Editora da UEL, 1997, pp. 117, 131.

[6] Cf. PACHECO E SILVA, A. C. Armando de Salles Oliveira. São Paulo: Livraria Editora Martins S. A, 1966, p. 21

[7] Cf. BONTEMPI Jr., Bruno. A cadeira de História e Filosofia da Educação da USP entre os anos 40 e 60: um estudo das relações entre a vida acadêmica e a grande imprensa. São Paulo: PUC, 2001, p. 32. Tese de doutorado.

[8] Cf. CAPELATO, Maria Helena & PRADO, Maria Lígia. O bravo matutino. Imprensa e ideologia: o jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: Alfa-Omega, 1980, p. 51.

[9] Cf. CAMPOS, Ernesto de Souza. Op. Cit. 100 e FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. Universidade & Poder: análise crítica/ fundamentos históricos: 1930-45. Rio de Janeiro: Acihiamé, 1980. p. 179. Anexo 5. Nosso destaque.

[10] Sobre seu túmulo, situado no cemitério ao lado da Rua da Consolação, em São Paulo, foi erguida na vertical, uma vagem para representar a universidade, a semente que havia criado.

[11] PACHECO E SILVA, A. C. Op. Cit. pp. 119, 120, 121, 122, respectivamente.

[12] A Escola Livre de Sociologia e Política, criada em 1933, em 1938 foi anexada como instituição complementar à USP. Cf. FÁVERO, Maria de Lourdes de A. Op. Cit. p. 57 e CAMPOS, Ernesto de Souza. Op. Cit. p. 520.

[13] BARROS, Roque S.M. de. Júlio de Mesquita Filho e a Universidade. BARROS, Roque S.M. de. Estudos Brasileiros. Londrina: Editora da UEL, 1997,  p. 120.

[14] Cf. Idem.  p. 121.

[15] Para compreender como ocorreu o processo de criação da universidade no Brasil e entender o projeto burguês de sociedade e educação nela envolvido, conferir nossa Tese de Doutorado intitulada “Liberalismo, neoliberalismo e educação. Roque Spencer Maciel de Barros, um ideólogo da burguesia brasileira”. Faculdade de Educação da Unicamp, 2003.