EDUCAÇÃO E HISTÓRIA: ALGUMAS
REFLEXÕES TEÓRICAS
Angela Maria Souza Martins
Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro – UNIRIO
INTRODUÇÃO
Ao iniciar nossa pesquisa percebemos que havia poucas discussões
de caráter epistemológico sobre algumas categorias teóricas que embasavam a
história da educação brasileira. Praticamente não existiam textos discutindo
amplamente categorias como: mentalidade, ideologia e representações sociais, no
sentido de mostrar a propriedade do uso dessas categorias na pesquisa da
história da educação. Acreditamos que precisamos gerar discussões que possam
contribuir para uma análise mais profunda das categorias usadas na
historiografia da educação brasileira.
A história contemporânea vem realizando
uma discussão rica e complexa no campo da historiografia. Faz parte desta
discussão a questão do entrelaçamento entre o social e o histórico e a
possibilidade de construir uma história que não fique na superfície dos
acontecimentos. Uma história profunda e total, que explicite as vinculações
básicas entre os diferentes aspectos de uma realidade sócio-cultural.
É preciso perceber as verdadeiras
tramas da história, o que se desenrola nas diferentes realidades
sócio-culturais, as múltiplas facetas de um determinado período histórico-cultural.
Cabe aqui citar Marc Bloch e Lucien Febvre que ao fundarem a “Escola dos
Annales” pretendiam tirar a história de sua velha rotina e de seu confinamento
disciplinar, pretendiam “derrubar as
velhas paredes antiquadas, os amontoados babilônicos de preconceitos, rotinas,
erros de concepção e de compreensão” ( LE GOFF, 1993:30).
Com Lucien Febvre e as novas gerações
dos “Annales” estavam instauradas as bases de uma nova historiografia, que
trazia contribuições significativas. De acordo com Febvre, aqueles que
investigam as representações, o pensamento de cada época, devem buscar “a originalidade, irredutível a qualquer a
qualquer definição a priori, de cada sistema de pensamento na sua complexidade
e nas suas mudanças” (CHARTIER, 1986:33).
Assim Febvre, Bloch, Chartier e alguns
historiadores da cultura de tendência marxista nos mostram como é necessário
buscar a precisão e o rigor das categorias que trabalhamos na análise da
histórica. Acreditamos que um debate, entre as tendências marxistas e as demais
tendências da historiografia contemporânea, contribuirá significativamente para
pensar a história da educação brasileira e, especialmente, a importância da
escola pública nessa história.
Por isso, estamos desenvolvendo um trabalho de pesquisa que tem como
finalidade estudar as seguintes categorias teóricas: ideologia, mentalidade e
representações sociais, buscando compreender com maior precisão essas
categorias que consideramos imprescindíveis à análise da história da educação.
Apresentamos neste texto algumas reflexões preliminares a respeito dessas
categorias e sua importância para a história da educação.
Consideramos a educação uma prática social e histórica, que
produz representações, ideologias, imagens e valores que são internalizadas no
processo educativo, por isso precisamos explicitar epistemologicamente essas
categorias, no sentido de compreender mais profundamente as práticas e
processos educacionais. Acreditamos ser necessário saber: quais são as
diferenças entre os termos mentalidade, ideologia e representação social?
Podemos entrelaçar essas três categorias na historiografia da educação? Essas
categorias são também utilizadas na sociologia, na política e na psicologia
social, sendo assim, seria possível uma abordagem interdisciplinar? A historiografia
da educação brasileira priorizou alguma dessas categorias? São perguntas que
precisam ser respondidas se queremos fazer um trabalho rigoroso na pesquisa
histórica da educação brasileira.
HISTÓRIA E
MENTALIDADE
Estudamos a categoria mentalidade de
acordo com a perspectiva de Michel Vovelle. Este autor se classifica como sendo
um historiador marxista das mentalidades. Elaborou estudos a respeito das
atitudes coletivas perante a morte, fatos relativos a história religiosa e
outros temas culturais. Segundo Vovelle, o conceito de mentalidade é
fundamental para o estudo da história cultural. Considera esse conceito mais
amplo que o de ideologia, porque se refere ao que não é aparente, ao “não
significante”, ou seja, “a força de inércia das estruturas mentais”
(Vovelle M., 1991:19). Para Vovelle (1991), a história cultural das
mentalidades é:
“O estudo das mediações e da relação dialética entre, de um
lado, as condições objetivas d vida dos homens e, de outro, a maneira como eles
a narram e mesmo como a vivem. A esse nível, as contradições se diluem entre
dois esquemas conceituais, cujos aspectos contrastamos: ideologia de uma parte,
mentalidade de outra. O estudo das mentalidades, longe de ser um empreendimento
mistificador, torna-se um limite, um alargamento essencial no campo da
pesquisa. Não com um território estrangeiro, exótico, mas como prolongamento
natural e a ponta fina de toda história social”. (Vovelle M., 1991:24-25)
Vovelle une o mental e o social, a
subjetividade e a objetividade. Busca mediações complexas entre a vida real dos
homens e as suas representações. Pretende não fazer um uso reducionista da
teoria marxista, ou seja, explicar os fenômenos culturais através da
determinação absoluta pelo econômico. Vovelle nos faz pensar sobre a relação
entre as produções mentais e os seus vínculos com a realidade sócio-econômica.
Será que o mundo cultural é determinado pela realidade sócio-econômica? Como
devemos interpretar atitudes, as representações e os comportamentos coletivos
que surgem num determinada época histórica?
A princípio, a história das
mentalidades situa-se basicamente no nível da cultura, do pensamento explícito,
dos sistemas de crenças e valores de um determinado grupo social ou de uma
sociedade, depois ela começa a enveredar para uma história dos comportamentos,
das atitudes e das representações coletivas inconscientes.
Os historiadores das mentalidades
passam a buscar as categorias psicológicas que fundamentam os sistemas de
idéias ou representações de um determinado grupo social. Indagam sobre o
concebido e o sentido, o intelectual e o afetivo.
É necessário buscar a compreensão do
conceito de mentalidade na tradição durkheimiana, que relaciona consciência e
pensamento, “pondo em relevo os esquemas ou conteúdos de pensamento que,
embora enunciados de modo individual, são de fato os condicionamentos não
conscientes e interiorizados que fazem com que um grupo ou uma sociedade
partilhe, sem que seja necessário explicitá-los, um sistema de representações e
um sistema de valores”. (Chartier, R., 1986: 41).
O estudo da mentalidade remete à
discussão do “inconsciente coletivo” e do “imaginário coletivo”. Ressaltamos
que esses conceitos não são tratados pelos historiadores das mentalidades, nem
sob o prisma da psicanálise, nem tampouco segundo a concepção antropológica de
Lévi-Strauss. Na verdade, é uma noção empírica que mostra um pensar coletivo
com seus ritmos e causalidades próprios.
A discussão em torno das mentalidades e
da ideologia nos coloca o problema da relação entre as idéias e a realidade
sócio-cultural. Esta relação trava-se no terreno político ou é possível falar a
respeito de concepções de mundo e de crenças tendo como parâmetro
exclusivamente o campo psicológico? Esta questão torna-se bastante complexa
quando lidamos com as concepções educacionais. É certo que existem
comportamentos, atitudes, práticas educacionais que não podem ser explicadas
apenas no terreno político, mas fica a questão: as atitudes perpassadas pelo
psicológico não teriam também um certo desdobramento político? Podemos apregoar
a autonomia do mental e sua irredutibilidade ao econômico e ao social? Não
seria o conceito de mentalidade profundamente empírico? É possível existir uma
mentalidade sem a presença da ideologia?
Não podemos deixar de ressaltar que a
categoria “mentalidade” nos possibilita pensar a questão das mediações
complexas entre a vida real dos homens e as representações que ele produzem
para si, além da permanência por uma longa duração de comportamentos e atitudes
numa determinada cultura. Por exemplo: poder-se-ia pensar o processo
civilizatório da educação brasileira, estudando quais os valores conformariam a
mentalidade civilizatória da educação pública brasileira, ou seja, o que
permaneceu, ao longo das décadas, nesse processo civilizatório. Mas observamos,
através de nossas leituras, que tal postura investigativa é muito pouco
explorada. Encontramos mais freqüentemente na historiografia educacional
brasileira a categoria ideologia.
Devido a grande incidência da categoria
ideologia em nossa historiografia, consideramos pertinente dialogar com: Marx,
Gramsci e Althusser para captar o que há de mais significativo com relação à
categoria ideologia nestes autores, mesmo porque constatamos que, nas três
últimas décadas, a historiografia educacional brasileira tem priorizado esses três autores.
HISTÓRIA E
IDEOLOGIA
Ao longo da
história, os homens têm produzido representações ou idéias por meio das quais
interpreta, explica e justifica sua vida individual, social e suas relações com
a natureza. A questão de fundo tem sido procurar entender essas representações
e idéias num determinado contexto social e histórico. Como são produzidas,
apropriadas e disseminadas as idéias e representações numa determinada
sociedade? Busca-se compreender a origem, os fins, as relações e efeitos
históricos das representações e idéias produzidas pelos homens.
Foi Marx, no século
XIX, quem formulou uma importante teoria sobre a origem e o papel das idéias
nas diversas formas de organização social, ou seja, aprofundou o conceito de
ideologia. Como sabemos, sua proposição básica é a não desvinculação da
produção das idéias das condições sociais e históricas onde são produzidas. O
ser social determina a consciência social. As produções da consciência estão
vinculadas, mesmo que indiretamente, a produção material.
No “Prefácio à
Contribuição Crítica da Economia Política”, Marx aponta o lócus da ideologia dentro da estrutura social, a superestrutura,
onde se localizam as formas de consciência social. Assim, as formas jurídicas,
políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas são formas ideológicas por
meio das quais os homens tomam consciência dos conflitos e lutam para
resolvê-los.
Engels, na carta a
W. Borgius, em 25 de janeiro de 1894, explica que “o desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário,
artístico etc., baseia-se no desenvolvimento econômico. Mas todos eles reagem
uns sobre os outros e também sobre a base econômica” (ENGELS, F.,
1974:530). Assim, as condições materiais de existência determinam as formações
ideológicas, mas estas se relacionam entre si, provocando alterações na
superestrutura e também na base econômica. As relações superestruturais são
meios de expansão ou de entrave ao desenvolvimento das forças produtivas, ou
seja, essas relações têm uma “autonomia relativa” frente a infraestrutura.
Isso significa que
as formas ideológicas desempenham um papel fundamental no desenvolvimento da
estrutura social, pois como mencionamos anteriormente, por meio das formas
ideológicas os homens entram em contato com seus conflitos.
Segundo Cardoso (1978), a formação das
classes sociais se realiza simultaneamente em dois planos: o econômico e o
ideológico. Definimos as classes sociais de acordo com: a) as relações travadas
entre infraestrutura e as formações ideológicas; b) as relações que elas travam
entre si. O campo ideológico é fundamental para a formação das classes sociais
porque “é na ideologia e pela ideologia
que a base econômica é encoberta – ou melhor, que os conflitos da estrutura
econômica são escondidos – por outro lado também é na ideologia, pela relação
ideologia/base econômica que aqueles conflitos são percebidos e formulados”
(CARDOSO, M. L., 1978:57).
Assim, a ideologia é
um modo de conhecer a realidade social, por isso ela tem uma participação ativa
e efetiva numa formação social, apresentando uma eficácia na explicação ou
ocultamento de uma determinada realidade. A ideologia apresenta duas dimensões:
histórica e social. Os sistemas de idéias estão em formação, se transformam na
história e com a história e fundamentam as relações sociais (CARDOSO, M. L.,
1978).
A ideologia
possibilita um estreito vínculo com o real, constrói formas específicas para
conhecê-lo, por isso “em realidades
diferentes, idéias diferentes são elaboradas” (CARDOSO, M. L., 1978:79).
Cada classe social constrói uma concepção específica de mundo porque as
condições concretas de vida são profundamente diferentes, mesmo vivendo sob um
mesmo modo de produção, a construção da consciência não será semelhante nas
diferentes classes.
Cardoso(1978) ao
explicitar o papel epistemológico da ideologia trabalha com a concepção
gramsciniana de ideologia. De acordo com Gramsci, a ideologia está inserida no
complexo estrutura/superestrutura, complexo que é denominado bloco histórico. O
conjunto da estrutura com a superestrutura formam um bloco histórico e o homem
também é concebido como um bloco histórico, síntese de relações sociais e
históricas, fruto do encontro da subjetividade com a objetividade, que
produzirá idéias, valores e normas para atuar na prática social. Assim, a
partir de sua vivência no interior de um determinado bloco histórico, os homens
vão construindo suas explicações e justificativas de mundo, criando ideologias.
A ideologia, segundo
Gramsci, é uma concepção de mundo “que se manifesta implicitamente na arte,
no Direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vidas
individuais e coletivas” (Gramsci, 1978:16). Devemos analisar a ideologia
historicamente, distinguindo entre “ideologias historicamente orgânicas,
isto é, que são necessárias à uma
determinada estrutura e ideologias arbitrárias, racionalistas, desejadas. Na
medida em que são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade
“psicológica”: elas organizam as massas humanas, formam o terreno sobre o qual
os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição e lutam”
(Gramsci, 1978:63). De acordo com Gramsci, podemos afirmar que uma ideologia
pode contribuir para consolidar ou transformar uma estrutura e não deve ser
tratada simplesmente como “falsa consciência”.
As ideologias não
são julgadas segundo critério de verdade ou falsidade, mas de acordo com a sua
função e eficiência em reunir classes ou frações de classes em posições de
domínio ou subordinação, ou seja, as ideologias contribuem para cimentar uma
estrutura social, consolidando uma determinada hegemonia. A ideologia é
responsável pela coesão social.
Para Gramsci, a
ideologia se constitui como uma forma de conhecer o mundo, ela é composta de um
sistema de idéias e de atualizações, institucionalizadas ou não. Enquanto modo
de conhecer a realidade, a ideologia tem uma participação ativa e efetiva numa
formação social, apresentado uma eficácia na explicação ou ocultamento de uma
determinada realidade. De acordo com a inserção social produzem-se ideologias
diferentes, por isso cada classe social constrói uma concepção específica de
mundo porque as condições concretas de vida são profundamente diferentes. Mesmo
vivendo sob o mesmo modo de produção, a construção da consciência não será
semelhante nas diferentes classes. Assim, a especificidade de cada classe e a
relação entre classes diferentes, numa mesma realidade social, é o ambiente
onde se constroem as ideologias.
Podemos afirmar que
o pensamento de Gramsci oferece contribuições fundamentais porque mostra que
uma ideologia tem uma identidade complexa e não é simplesmente um “ardil
imposto pela classe dominante a fim de iludir eternamente os trabalhadores e
desse modo impedir a casse dominada de cumprir o seu papel histórico” (Da
Ideologia, 1980:70). Na verdade, a ideologia tem um papel gnoseológico e
tudo depende do contexto histórico e em que posição de classe está sendo
construídos os valores, idéias e normas.
Dialogando com
Gramsci, encontramos Althusser, cuja preocupação primordial é buscar a
racionalidade e a cientificidade do marxismo. Em sua obra, a categoria
ideologia está vinculada aos conceitos de ciência e formação social. A
ideologia aparece como um nível que compõe a formação social.
De acordo com Althusser,
a formação social é composta de instâncias ou níveis: estrutura econômica e
superestruturas política e ideológica. Cada nível ou instância é diferente
porque se refere a práticas e objetos distintos e também cada um difere na
capacidade de determinar os outros. Há uma relação hierárquica entre as
instâncias, o econômico determina em última instância os níveis político e
ideológico. Mas é necessário lembrar que a superestrutura não é um reflexo da
infraestrutura, a primeira, na verdade é a condição necessária de existência da
segunda.
Segundo Althusser,
as instâncias política e ideológica possuem uma relativa autonomia em relação
ao econômico e uma capacidade de reproduzir ou não um modo de produção. A
ideologia é uma estrutura importante à vida das formações sociais e em todo
contexto histórico, a ideologia tem um papel a desempenhar, porque as relações
ideológicas ocultam as relações reais de uma formação social, mas a ideologia
não deve ser vista como uma ilusão.
Na verdade, a
ideologia é uma relação vivida entre os homens e o seu mundo. Na ideologia os
homens exprimem “a maneira pela qual vivem a relação entre eles e suas
condições de existência: isto pressupõe tanto uma relação real como uma relação
imaginária vivida”( Da Ideologia, 1980:111). A ideologia é uma
representação da relação imaginária dos homens com a realidade. A função social da ideologia não é
possibilitar um conhecimento verdadeiro da estrutura social, mas inserir os
sujeitos nas suas atividades práticas que sustentam a estrutura social. Por
isso, afirma que a ideologia oculta as contradições reais e reconstitui um
discurso imaginário que explica a realidade. A ideologia tem três funções:
coesão, inversão e mistificação. Partindo dessa concepção Althusser teoriza
sobre os Aparelhos Ideológicos do Estado, considerando a escola o principal
aparelho ideológico da sociedade capitalista.
Como vimos em Marx, Gramsci, e Althusser, a discussão
sobre a categoria ideologia, gira em torno das seguintes questões: a relação
efetiva que existe entre as idéias produzidas pelos homens e a realidade social
e histórica; o grau de determinação entre a produção de idéias e a base
material de uma formação social; a importância epistemológica da ideologia, ou
seja, a ideologia enquanto forma de conhecimento do mundo e o papel político da
ideologia. Acreditamos que é fundamental para a historiografia da educação
brasileira, questionar a origem, os fins, as relações e efeitos históricos de
uma ideologia.
AS REPRESENTAÇÕES E A HISTÓRIA
Como vimos
anteriormente em Marx, as representações, ou melhor, os elementos que compõem a
consciência têm uma base real, que é antagônica e contraditória. As
representações do social são elaboradas nas relações sociais, que tem como
fundamento as relações de produção. São as relações sociais que possibilitam a
produção das representações do social e, conseqüentemente, a consciência do
social. De acordo com Marx, se pretendemos compreender a produção de idéias e
as representações sobre uma determinada realidade histórica precisamos, então,
ir ao momento de sua gênese, a atividade material realizada pelos homens nos
diferentes períodos históricos.
Dialogando com essa
concepção de representação, no campo da história cultural, encontramos Lucien
Febvre e Roger Chartier. Como já mencionamos anteriormente, Lucien Febvre funda
uma história das representações coletivas, que busca compreender as idéias,
crenças e categorias intelectuais de uma determinada época. O caminho aberto
por Lucien Febvre será aprofundado por Roger Chartier, que se insurge contra as
análises predominantes na história cultural francesa e busca mostrar uma
maneira diferente de pensar as evoluções e posturas intelectuais. Para ele, a
história cultural tem “por principal
objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, R.,
1986:16-17).
Na análise de
Chartier, três categorias são fundamentais para a compreensão da história
cultural: representação, prática e apropriação. A história cultural pode
penetrar no social quando trabalha com as representações que os grupos fazem de
si e dos outros. Pois, assim, volta a sua atenção para estratégias que minam
posições e relações, e para a “apreensão” que as classes, grupos, etc. têm de
si, possibilitando a construção de sua identidade.
A noção de representação é fundamental para a compreensão da
especificidade do funcionamento das diferentes formações sociais, assim como
das operações intelectuais que permitem a apreensão do mundo. Através da noção
de representação é possível a articulação de três modalidades de relação com o
mundo social:
1)
“Classificação e delimitação que produz as
configurações intelectuais múltiplas através das quais a realidade é
contraditoriamente construída pelos diferentes grupos;
2)
as práticas que visam reconhecer uma
identidade social;
3)
as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns
‘representantes’ ...
marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo,
classe ou
comunidade”(idem, p.23)
Para Roger Chartier,
o mundo é uma representação, por isso é importante refletir sobre o modo como
algo é apropriado, como as pessoas vêem e pensam o “real”. É imprescindível
pensar a relação real/representação. Devemos compreender como um sentido e um
determinado significado é construído historicamente.
As idéias não possuem um sentido intrínseco que é captado por
diferentes sujeitos tal como foram concebidas por seu criador. Na verdade, as
idéias adquirem sentido através da multiplicidade de interpretações que
constroem suas significações.
A apropriação de uma determinada idéia ou valor é, de certa
forma, uma produção, cria representações que diferem daquelas do criador. Ler,
ouvir e olhar são atitudes intelectuais que permitem uma reapropriação dos objetos
ou idéias de uma realidade social. A partir dessa perspectiva pode-se afirmar
que não é correto dizer que uma ideologia modela simplesmente uma classe
social, porque os sujeitos dessa classe estão permanentemente se apropriando de
concepções e as modificando, instalando o processo constante de produção. O
real está constantemente sendo representado e apropriado pelos sujeitos
sociais, que lhe conferem diferentes significados. Em cada momento histórico,
as idéias e as práticas devem ser vistas como textos que devem ser lidos e
decodificados. Dessa forma, os sujeitos históricos são devolvidos à sua época e
somente podem ser compreendidos em sua complexidade nos seus respectivos
contextos.
O modo complexo de tratar as representações abre um campo pleno de
possibilidades para a investigação da história da educação, principalmente o
estudo das relações entre o pensamento pedagógico e as formas de apropriação do
mesmo nas práticas educacionais. Inclusive pode possibilitar uma nova análise
das ideologias ou concepções que embasam as práticas escolares, mostrando suas
estratégias e formas de apropriação.
O estudo das representações também pode favorecer uma percepção
mais aguda das “culturas pedagógicas” produzidas pelas instituições escolares,
mostrando suas especificidades e estratégias de imposição e táticas de
apropriação. As instituições escolares podem ser vistas como entidades
veiculadoras e mediadoras de ações culturais, que nem sempre reproduzem a
cultura dominante de uma sociedade, porque podem ser instâncias de resistência
e instituidoras de um outro procedimento cultural.
A educação enquanto instância político-cultural deverá enfrentar
os novos desafios epistemológicos propostos pelo confronto dos diferentes
paradigmas contemporâneos da história, a saber: o marxismo, a Escola dos
“Annales” e suas novas gerações. Desafio que se inicia com o entrelaçamento
entre o social e o histórico e, caminha em direção ao debate sobre a ideologia,
as representações sociais e as mentalidades. Este debate poderá abrir novas
pistas para pensar a aproximação entre a subjetividade das representações e a
objetividade das estruturas.
Além disso, podemos inferir inicialmente que as representações
são elementos fundamentais para alimentar as ideologias e as mentalidades. Ao
representar o mundo, os homens travam relações econômicas, sociais, políticas e
afetivas com um determinado contexto sócio-histórico e, assim, instauram sua
relação simbólica com o mundo. Por isso, os historiadores da educação brasileira
precisam considerar as relações entre representação/mentalidade e
representação/ideologia. Outra relação que não pode ser esquecida é a relação
ideologia/mentalidade, as mentalidades presentes nos diferentes contextos
históricos tem no seu interior ideologias que precisam ser desvendadas. Mesmo
porque, como já mencionamos anteriormente, as ideologias têm uma importância
epistemológica, enquanto formas de conhecimento da realidade social e histórica
e também tem um papel político, pois nascem no interior de lutas entre classes
sociais.
Essas três categorias são fundamentais para a historiografia da
educação brasileira, mesmo porque nos estudos iniciais que realizamos apenas a
ideologia aparece com um papel de destaque nos registros da educação brasileira.
Devemos deixar fluir o debate entre as categorias presentes na história e
construir uma historiografia da educação brasileira com um enfoque mais
complexo e interdisciplinar.
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