UMA LEITURA DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE EMILIO OU DA EDUCAÇÃO[1]

Graziela Lucchesi Rosa da Silva[2] e João Batista Zanardini[3]

 

Jean-Jacques Rousseau foi a figura mais singular do iluminismo francês, movimento cultural europeu, que ocupa o século que corre entre a Revolução Inglesa (1688) e a Revolução Francesa (1789). Rousseau é filho do iluminismo e, ao mesmo tempo, superou o iluminismo, rumo ao romantismo. É iluminista, lutou contra a tradição vigente. É anti-ilumunista, por admitir o primado do sentimento, da espontaneidade natural, que reconhece como fonte de todos os valores contra a razão, a cultura, a civilização, de que o iluminismo se vangloriava, e a que atribui a origem de todos os males.

A civilização e a sociedade, corrompem o homem: é preciso recorrer ao sentimento, voltar à natureza, que é boa. Rousseau entende a natureza imediatamente no sentido cronológico, como sendo o estado primitivo, originário da humanidade. Depois entende no sentido espiritual, como espontaneidade, liberdade, contra todo vínculo inatural e toda escravidão artificial. O homem não deve ser a roda de uma máquina em uma sociedade materialista; a vontade individual não deve ser prisioneira de uma vontade coletiva; o espírito não deve ser exterioridade, e sim interioridade. A liberdade não é apenas um direito, mas um dever imprescindível da natureza humana, que exige também a igualdade dos homens, em virtude, precisamente, da natureza comum. Tal natureza humana, sem os males da civilização, produzirá frutos da fraternidade universal.

As obras fundamentais de Rousseau são o Contrato Social e o Emílio, publicadas ambas em 1762 e ambas condenas pela autoridade política da França. Nestas obras tratava-se, respectivamente, do problema político e do problema pedagógico. O problema político é, substancialmente, o da conciliação entre liberdade e autoridade, indivíduo e Estado. Rousseau imagina os homens originariamente isolados em um estado de natureza. Daí surge historicamente o estado como escravidão, depois o despertar-se e chocar-se dos egoísmos particulares. Este estado tirânico deverá ser substituído, segundo Rousseau, pelo Estado como liberdade, isto é, como expressão da vontade geral, dos interesses comuns, humanos, universais.

A vontade geral é diversa da vontade de todos, como o valor qualitativo é diferente do valor quantitativo, como o povo é diverso da multidão. A soberania política não compete ao soberano (como sustenta Hobbes), mas à vontade geral, ao povo. O estado de natureza é superado, idealmente, pelo contrato social, em virtude do qual se tem uma alienação dos direitos individuais, confiados à comunidade.

Ao mesmo tempo em que Rousseau idolatra um estado ideal, que não seja a escravidão, e sim liberdade e valorização do individuo humano, imagina também uma educação natural, em que o discípulo não seja oprimido pelo mestre, mas simplesmente auxiliado em desenvolver a sua humanidade originária.

Segundo Rousseau, com efeito, a natureza seria originária e fundamentalmente boa, não corrompida pelo pecado original. Então cumpre deixar que se desenvolva, auxiliando-a nesta tarefa, sem mortificá-la em nada. Dessa maneira o indivíduo se forma segundo a natureza, apto para ingressar na sociedade natural dos homens, que se origina pela vontade geral.

O Emílio ou da Educação é uma “coletânea de reflexões e observações” em que Rousseau procura delinear as linhas gerais que deveriam ser seguidas, por todos os homens, para a “boa educação” das crianças. Este ensaio pedagógico trata dos princípios para evitar que a criança se torne má na fase adulta, uma vez que o pressuposto central do pensamento do autor é a bondade natural do homem. “O homem é naturalmente bom, o mal é conseqüência da sociedade.” (ROUSSEAU, 1985, p.8).

No entanto, a importância de Emílio ou da Educação reside muito além das preocupações pedagógicas de Rousseau e não pode ser considerada apenas como um tratado de educação, é muito mais uma investigação filosófica a respeito da contradição que existe na natureza dos homens que pode ser expressa na oposição entre as inclinações para agir de acordo consigo mesmo e os deveres que são imanentes do convívio social.

Esta preocupação de Rousseau quando retrata os enfrentamentos entre as inclinações naturais que podem ser consideradas como inclinações primitivas, e os deveres sociais ou políticos, ficam mais evidentes à luz da contradição entre natureza e sociedade analisadas como sendo dois momentos da evolução do espírito humano antagônicos. Pois, ao contrário de estado e sociedade, o estado de natureza é amoral, ahistórico, não envolvendo nenhuma espécie de relações entre os homens.

Os homens vivendo neste estado primitivo vivem isolados e preocupam-se com a preservação da própria vida; já no estado de sociedade eles adquirem novas necessidades que extrapolam à auto-conservação mas refletem uma vida interior, o desenvolvimento de novas faculdades e novos conhecimentos.

Nesta obra o autor apresenta a história da perversão da natureza humana que vai do estado puro de natureza ao estado de sociedade, mostrando que as desigualdades sociais, morais e políticas não têm origem na natureza e sim que tratam-se de obras dos homens.

Quando explicitadas as oposições entre o modo de vida no estado de natureza e no estado de sociedade é possível perceber como o homem através do desenvolvimento sucessivo de seu espírito abandona a benevolência natural e se tornam mau.

Este princípio de bondade natural, permite traçar a história da humanidade em termos de decadência e leva a definição de “homem natural” e do “homem civil”, caracterizando o homem natural como aquele que vive somente para si mesmo e do homem civil, cuja existência passa a depender do concurso de seus semelhantes. “O homem natural é tudo para ele; é a unidade numérica, é o absoluto total, que não tem relação senão consigo mesmo ou com seu semelhante. O homem civil não passa de uma unidade fracionária presa ao denominador e cujo valor está em relação com o todo, que é o corpo social.” (ROUSSEAU, 1968, p. 13)

Pode-se traduzir esta contradição entre estes dois tipos de “homens”, como a contradição existente entre o “homem” e o “cidadão”, de certa forma é possível captá-la sob a forma de uma divergência entre as inclinações naturais e os deveres:  “Aquele que, na ordem civil, deseja conservar a primazia da natureza, não sabe o que quer. Sempre em contradição consigo mesmo, hesitando entre suas inclinações e seus deveres, nunca será nem homem nem cidadão; não será bom nem para si nem para outrem. Será um dos homens de nossos dias, um francês, um inglês, um burguês; não será nada.” (Idem)

Os deveres do cidadão ou do homem civil, são opostos às inclinações naturais, quando de acordo com estas mesmas, ele não agiria visando nenhum tipo de utilidade coletiva ou bem comum, mas anteriormente a isto, a satisfação de seus desejos particulares. Já do ponto de vista do homem natural, tudo que se pode adquirir em sociedade não tem sentido algum, logo são inexistentes as noções de obrigação ou dever, assim como todas as outras noções de utilidade pública ou comum, pois o homem natural vive apenas para si mesmo, tendo como principal preocupação a conservação de sua própria existência.

         Todo homem que sofre esta contradição, entre essas duas situações, é o que se denomina de homem real, ou nas próprias palavras de Rousseau é um francês ou um inglês, é todo aquele que não se decide entre homem civil ou homem natural. Todo aquele que se contradiz desta maneira não determina sua ação visando seus interesses particulares, nem tampouco, os interesses coletivos, ou seja, não tem existência absoluta como homem natural nem existência relativa como homem civil. Este homem não sabendo como guiar sua conduta, age ora como homem natural, ora como homem civil, e entra freqüentemente em contradição, querendo ser ao mesmo tempo um e outro.

         Neste sentido, o homem analisado por Rousseau, nos remete ao “homem de nossos dias”, é guiado pelas instituições humanas a contrariar suas disposições primitivas, sendo que este conflito entre o homem e o cidadão, aparece também em decorrência de uma crise institucional, mais particularmente da educação, quando aborda por exemplo, os três tipos de educação – “a educação da natureza”, que diz respeito ao desenvolvimento das faculdades e dos órgãos humanos, a “educação dos homens”, que se refere ao uso que se faz dessas faculdades, e “a educação das coisas”, que se dá por meio da experiência adquirida pelos homens quando estes se relacionam com as  coisas que o rodeiam. Segundo Rousseau:

 

É pois a essas disposições primitivas que tudo se deveria reportar; e isso seria possível se nossas três educações fossem tão somente diferentes: mas que fazer quando são opostas? Quando, ao invés de educar um homem para si mesmo, se quer educá-lo para os outros? Então o acerto se faz impossível. Forçado a combater a natureza ou as instituições, cumpre optar em fazer um homem ou um cidadão, porquanto não se pode fazer um e outro ao mesmo tempo. (MARUYAMA, 2001, p.28)

 

         É importante ressaltarmos que a contradição entre o homem e o cidadão, supõe também o conflito entre os interesses público ou comum, e o interesse privado ou particular. Não é a toa que é empregado em Emílio o modelo do cidadão espartano, que tem como primeiro interesse, não a vida particular ou privada, mas sim, a vida pública. Sendo que a ausência deste tipo de cidadão nas sociedades modernas leva a falência da instituição pública. Como a noção perfeita de nação para Rousseau, é aquela em que todos os integrantes mais se aproximam do modelo ideal de cidadão, a hesitação de todos aqueles que entram em contradição, colaboram para incompatibilizar tal modelo de nação.

         E esta dificuldade de estabelecer um acordo entre os interesse divergentes, fazendo triunfar na ordem política a vontade geral, que necessariamente estaria voltada à utilidade pública e ao bem comum, aponta para a tendência do corpo político à degeneração, sendo impossível conter os excessos e abusos dos particulares.

         Desta forma numa sociedade cheia de contradições sociais e onde os próprios homens vivem internamente em contradição interior, entre agir como homem natural ou como homem civil, não é possível falar em cidadão, logo não há pátria e não há instituição pública, como observamos neste fragmento de Emílio ou da Educação:

 

A instituição pública não existe mais, e não pode mais existir, porque não há mais pátria, não pode haver cidadãos. Estas duas palavras pátria e cidadão devem ser riscadas das línguas modernas. (...) Não encaro como instituição pública esses estabelecimentos ridículos a que chamam de colégios. Não levo em conta tampouco a educação da sociedade, porque essa educação, tendendo para dois fins contrários, erra ambos os alvos: ela só serve para fazer homens de duas caras, parecendo sempre tudo subordinar nada senão a si mesmos. (ROUSSEAU, 1968, p. 14)

 

 

         Analisando ainda a obra Emílio, podemos considerar que a opção por agir exclusivamente de acordo com os outros é ilegítima, uma vez que supõe a negação dos sentimentos naturais. Na associação política, a existência torna-se relativa, na medida em que depende do corpo social, e cada vez se torna mais incompatível com as inclinações naturais, pois o homem que segue suas inclinações naturais, não tem noção de dever ou obrigação. Neste sentido podemos entender quando Rousseau afirma que as boas instituições sociais são as que desnaturam o homem. Desta forma o cidadão definido ou pensado por Rousseau, é de modo geral, definido como o homem civil, uma “unidade fracionária”, cujo valor se dá em relação com o todo, que percebe-se como “eu” na “unidade comum”.

         É importante ressaltar que esta idéia de “desnaturação da natureza humana”, que aparece no Emílio, não implica necessariamente, na extinção do homem, portanto não há nesta obra de Rousseau uma opção pelo cidadão que exclua o homem, e isto é imprescindível, para que se compreenda o pensamento político presente no Emílio, haja visto que Rousseau, pretende unir através de um método pedagógico, os dois princípios que possam tornar Emílio ao mesmo tempo homem exemplar e cidadão exemplar, isso se torna claro quando o autor afirma que: “Para ser alguma coisa, para ser si mesmo e sempre um, é preciso agir como se fala; é preciso estar sempre decidido acerca do partido a tomar, toma-lo com altivez e segui-lo sempre. Estou à espera de que me mostrem esse prodígio, a fim de saber se é homem ou cidadão, ou como se arranja para ser a um tempo um e outro”. (MARUYAMA, 2001, p.36)

         Podemos captar do pensamento de Rousseau que há princípios anteriores e independentes da vontade, que inclusive agem no sentido de determiná-la, e se não é possível compatibilizar a vontade particular com a vontade geral, é possível, entretanto construir um método pedagógico a partir da natureza humana, os quais nos permitem falar numa tendência do homem à sociabilidade, não sendo preciso desta forma optar em ser homem ou cidadão, de forma que o homem haja de acordo com os outros sem deixar de agir de acordo consigo mesmo.

         Sendo assim, o autor francês Jean Jacques Rousseau, ao levantar a questão da ordenação política da sociedade não só faz a crítica à uma decadente forma de vida, e é neste sentido que podemos afirmar que o autor se opõe aos iluministas, bem como à toda uma consciência emergente, denunciando a presença de traços do velho nesta consciência que se mostra emergente, e é neste sentido que podemos afirmar que à sua época Rousseau se coloca como defensor da humanidade no terreno da luta, uma vez que visava questionar qualquer argumento que pudesse dar margem ao despotismo de um homem sobre o outro, principalmente quando critica a possibilidade de a democracia acabar sendo ferramenta deste despotismo. Neste sentido podemos perceber - limitando historicamente o pensamento de Rousseau, quando a burguesia não havia expressado concretamente sua maturação social - uma espécie de busca por demonstrar a possibilidade de uma ordenação social, que “regenerasse o homem”.

        

Referências:

MARUYAMA, Natália. A contradição entre o homem e o cidadão: consciência e política segundo J. J. Rousseau. São Paulo: Humanitas: FAPESP, 2001.

 

ROUSSEAU, Jean J. Discurso Sobre a Origem e a Desigualdade entre os Homens. (1775). Brasília: Universidade de Brasília, 1985.

 

ROUSSEAU, Jean J. Emílio ou da Educação. São Paulo: Defusão Européia do Livro, 1968.



[1] Parte deste  texto foi  apresentada na disciplina Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação II, ministrada pela Profª. Drª. Guaraciaba Aparecida Tullio  no curso de Mestrado em Educação da UEM  no ano de 2002.

[2] Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá.

[3] Professor da UNIOESTE – Campus de Cascavel e mestrando do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá.