Paschoal Lemme

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(1905-1997)

Entrevista De Paschoal Lemme concedida a Oswaldo Frota-Pessoa, Clarice Nunes e Sheila Kaplan.

Publicada em março de 1988.

— Mas afinal o que é que você quer ser?, perguntou-lhe certo dia o pai, preocupado com seu destino. O adolescente respondeu de pronto:

— Se não for professor, não serei mais nada!

Essa passagem profética aparece em Memórias de um professor, livro ainda inédito de Paschoal Lemme, que traz precioso material histórico, e não só autobiográfico. Sem saudosismos, Paschoal Lemme, 83 anos, escreve sobre o Rio de Janeiro do início do século, "aqueles tempos fáceis, de vida mansa e trato cordial" e, acima de tudo, sobre os episódios mais significativos da história da educação no país desde a década de 1920, nos quais teve participação ativa e direta.

Único signatário vivo do famoso "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova", ele pôde, à sua experiência de professor, unir a de administrador, cargo que exerceu nos períodos mais inovadores da educação brasileira, atuando ao lado de grandes nomes como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho. Ensinando ou participando da formulação de políticas educacionais, sua grande preocupação foi sempre a de lutar por oportunidades iguais para todos, preceito que, como bom mestre, até hoje não cansa de repetir

O senhor pode nos contar um pouco sobre sua infância e formação?

Venho de uma família de classe média. Eu me considero um europeu do sul nascido no Méier. Meu pai era italiano, calabrês, veio para cá muito moço, acompanhando uns tios, que acabaram falecendo no Rio de Janeiro, de febre amarela. O Rio de Janeiro, como se dizia então, era um "porto sujo", inteiramente tomado pela doença. No Engenho de Dentro, meu pai encontrou aquele que seria o meu avô materno. Era português e tinha uma grande barbearia. Naquele tempo, o barbeiro era também cirurgião, aplicava "bichas" e ventosas e trabalhava um pouco em odontologia. Ele acolheu meu pai, ensinando-lhe a língua e a profissão. Mas quando meu pai veio a namorar uma de suas filhas, nascida em Portugal e desde os dois anos no Brasil, recebeu muita oposição — afinal, era um "carcamano" pobre. Mesmo assim acabaram se casando.

Minha mãe teve 16 filhos; sobreviveram 12. Destes, oito estão vivos, dois irmãos ainda mais velhos do que eu. Ela tinha um nível cultural bastante razoável, alfabetizou os filhos todos. Seu sonho era ser professora. Só depois que fiz sete anos ingressei na escola da professora Olímpia de Castilho, pessoa altamente conceituada. Ali realizei toda a minha educação primária. A freguesia da escola pública era de classe média, os meninos de classe mais baixa cresciam inteiramente analfabetos.

Depois, fui para a escola do professor Teófilo Moreira da Costa, que foi o grande responsável pela minha formação. Era um homem excepcional, hoje totalmente desconhecido. Nas minhas memórias, faço um capítulo inteiramente dedicado a ele. Há quem pense hoje que oito anos de escola é exagero. Exagero nenhum. Naquele tempo eram sete anos, depois é que foram encolhendo, na proporção em que a população ia aumentando. Fiz, então, o curso de sete anos - elementar, médio e complementar. Três ciclos: três, dois e dois anos.

Com um esforço enorme, meu pai chegou até a Escola de Medicina, fez o curso de cirurgião-dentista. Tinha já quatro filhos quando se formou. Foi uma grande festa. Ele teve grande sucesso, era conhecido em todo o subúrbio, em especial no Méier, e fazia dos filhos seus auxiliares no gabinete dentário. Três dos meus irmãos seguiram a profissão, com grande sucesso também. Mas eu, não sei por que, detestava aquilo, tinha verdadeiro horror à boca aberta dos clientes. Então comecei a fazer oposição, a tentar me descartar daquele autoritarismo do meu pai, muito natural no indivíduo que se faz praticamente do nada.

Lembro que, uma vez, meu pai, desistindo de me fazer dentista, me perguntou: "Então, o que é que você quer ser?" E eu respondi: "Se não for professor, não serei mais nada." Foi então que esse professor Teófilo me encaminhou para o magistério. Sua influência me fez vislumbrar essa profissão, que eu nem sabia bem o que era: ser professor. Assim, entrei na célebre Escola Normal do Distrito Federal.

A Escola Normal era, naquele tempo, uma das grandes instituições de ensino do Rio de Janeiro...

Sim, havia três grandes instituições de ensino na capital da República: o Colégio Pedro II, o Colégio Militar e a Escola Normal. Os professores, os mais notáveis da época, eram comuns às três, alguns até da Escola de Medicina e da Escola Politécnica — as grandes instituições de ensino superior, junto com a Escola de Direito. Não havia universidade ainda. Afrânio Peixoto, por exemplo, ensinava medicina legal na Escola de Medicina e ciências naturais na Escola Normal. Entrei em 1918 e em 1922 saí formado professor, com 18 anos. Em l924, tive a primeira nomeação como professor adjunto de terceira classe. Fui então para a zona rural, uma escolinha de Guaratiba, começar a minha vida de professor. Aí conheci a minha mulher, professora também. Fomos nomeados em abril de 1924, no fim do ano já estávamos em pleno namoro. Em 1927, nos casamos.

Na Escola Normal, havia poucos rapazes. Quando entrei, eram quase mil moças para uns cem rapazes ou menos. Já nessa época a profissão de professora primária estava sendo quase que exclusiva das mulheres. Eram raros os rapazes que se formavam na escola normal e ficavam no magistério primário. Procuravam logo uma outra carreira no ensino superior. Faziam da Escola Normal um ensino secundário básico, mas esse curso — anomalias do ensino brasileiro — não dava direito ao ingresso na universidade. A gente, então, estudava em qualquer lugar e fazia os exames chamados preparatórios ou parcelados no Pedro II, ou em outro colégio oficial. Tive, então, que fazer todos os 11 preparatórios (português, francês, inglês, latim etc), tive que fazer tudo isso de novo para poder me candidatar ao vestibular da Escola Politécnica, onde entrei em 1927.

Seu ingresso na Escola Politécnica deu-se então por uma espécie de pressão social?

A pressão social influía. Para os homens, pareceria uma incapacidade ficarem apenas como professores de ensino primário. Era um pensamento que começava a brotar entre os rapazes e eu fui levado nessa mesma onda. Dos meus colegas, uns foram para o Colégio Militar, outros para a Escola de Medicina, mas todos procuravam ir além, sair do ensino primário, alcançando uma profissão de nível mais alto. Na Escola Politécnica, fiz apenas três anos de curso, porque aí deu-se minha ida em definitivo para a educação. Enquanto eu fazia o curso da Politécnica, o professor Teófilo me chamou para ensinar complementos de matemática na escola que ele então dirigia, uma escola de tipo profissional, onde cada professor já lecionava apenas uma matéria ou duas. Mas logo em seguida fui convidado (nunca pleiteei nada) a colaborar na reforma Fernando de Azevedo, o que me desviou inteiramente da possibilidade de concluir o curso de engenharia.

O senhor foi chamado diretamente pelo Fernando de Azevedo?

Não, eu nem o conhecia. Fui chamado por um colega meu, diretor de escola, que era secretário dele: Antônio Vítor de Souza Carvalho. Com a reforma de ensino, a antiga Diretoria de Instrução Pública dividiu-se. Fernando de Azevedo deu uma nova organização ao ensino do Rio de Janeiro, criando duas subdiretorias. Além do diretor geral, que chefiava tudo, havia uma subdiretoria administrativa e uma subdiretoria técnica. Essa subdiretoria técnica foi chefiada pelo Jônatas Serrano, um grande professor de história do Colégio Pedro II e da Escola Normal. Ele precisava de um assessor e meu nome foi indicado. Quando, depois, o Antônio Vítor foi nomeado secretário do Instituto de Educação, vagou-se o seu cargo. O professor Álvaro Gomes, que era o oficial-de-gabinete, passou a secretário e eu passei a oficial-de-gabinete do Fernando de Azevedo, diretamente. Participei assim daquela reforma toda, ocorrida entre 1927 e 1930, no governo de Washington Luís.

Quando veio a Revolução de 1930, fomos acusados de República Velha, sofremos uma série de contestações, até inquéritos. Antes do Fernando de Azevedo, os cargos de inspetor escolar eram preenchidos exclusivamente por influência política. Eram pessoas nomeadas diretamente, sem nenhuma qualificação especial. Esses inspetores, em cada distrito escolar, tinham um grande poder, eles é que manejavam toda a máquina de ensino em cada uma das suas regiões. Era uma verdadeira opressão no comando da política do ensino. Havia muito favoritismo político. Se hoje há ainda, e é o grande mal da política brasileira, naquele tempo era mais tacanho, de nível muito baixo. Esses inspetores, então, foram tremendamente coibidos no seu autoritarismo pela reforma. Da parte deles é que vinha uma grande campanha com Fernando de Azevedo, que justamente transformou o cargo num cargo de carreira. Começaram os inquéritos e o prefeito Prado Júnior foi acusado pelo "desperdício" representado por este belo prédio que está aí até hoje, na rua Mariz e Barros, acomodando o Instituto de Educação. Segundo anedota da época, o Prado, homem riquíssimo, disse então : "Vocês vejam qual foi o prejuízo, eu compro o prédio." Além de regulamentar a política de preenchimento de cargos, a reforma Fernando de Azevedo trouxe a modernização do ensino. O Brasil estava fazendo um grande esforço de modernização e, a partir de 1922, começaram nos vários estados as grandes reformas de ensino. A mais profunda delas foi justamente na capital da República. Em 1924, foi fundada a Associação Brasileira de Educação (ABE), uma grande entidade, que tomou a si a propaganda das idéias novas que vinham da Europa depois da guerra.

Que inovações a reforma Fernando de Azevedo trouxe?

As escolas, antes, eram uma rotina: ler, escrever, contar e pouco mais. A nova concepção, que chegou a ser chamada de "revolução copernicana" da educação, não foi inventada no Brasil, veio de uma corrente européia e da América do Norte. Basicamente, ao invés de o ensino ser ditado pelas idéias do professor ("o professor disse e não se discute"), passou-se a prestar atenção à psicologia da criança. Foi-se descobrindo que os indivíduos, em seu desenvolvimento biológico e psicológico, tinham interesses diferentes. As professoras eram levadas a estudar a psicologia da criança, que deixava de ser considerada um adulto em miniatura. Procurava-se então ensinar a matemática, a linguagem e os outros conhecimentos partindo daquilo que a criança podia compreender.

Em 1932, houve o célebre "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova". Que circunstâncias tornaram necessário esse documento?

Com a Revolução de 1930, iniciou-se a degradação dos marcos conquistados pela reforma Fernando de Azevedo, inspirada por uma filosofia democrática e progressista. Então, dois anos depois, pareceu aos nossos melhores líderes educacionais, homens de ciência e intelectuais, congregados na ABE, que era preciso divulgar um documento que marcasse, com o peso de sua autoridade, as normas fundamentais que deveriam reger a educação nacional para que ela fosse pública, leiga, obrigatória, gratuita, ativa e progressista. O "Manifesto dos Pioneiros" exerceu influência fundamental nas campanhas que precederam a redação das Constituições de 1934 e 1946.

Depois de já ter passado pelo magistério, como foi sua experiência na administração de educação?

Eu tinha uma formação independente e contestadora. Era muito crente no ensino do professor, achava a profissão muito importante e desprezava inteiramente a administração, pensava que era uma burocracia. Quando fui chamado para auxiliar o Jônatas Serrano, ele veio conversar comigo e eu lhe disse que minha carreira era de magistério, que não pretendia deixar a sala de aula e não desejava de maneira alguma ingressar na administração. Ele virou-se e disse: "É exatamente a minha situação, mas o Fernando de Azevedo, com seu ímpeto renovador, me seduziu." Aí eu me rendi.

Resolvi aceitar o convite, com muita desconfiança, para saber como é que funcionava a coisa por dentro. Eu que vinha de soldado raso, professorzinho, queria saber como é que funcionava a administração, qual era realmente a sinceridade daqueles homens públicos. O fato é que passei a ser um admirador do Fernando de Azevedo. Trocamos correspondência a vida toda. Só então entendi o que seria uma política de educação. Praticamente deixei o magistério. Voltei depois por circunstâncias muito especiais, mas fiquei mais nessa situação de administrador de ensino. Em 1939-40, fui estudar o assunto na América do Norte, mas a realidade deles, tão diferente, me ajudou muito pouco a entender o Brasil.

Em seguida à administração de Fernando de Azevedo, veio a famosa administração de Anísio Teixeira. Passado aquele período de confusão da revolução, as coisas começaram a se assentar. O Anísio tinha feito uma administração na Bahia de 1924 a 1927 e foi indicado a Pedro Ernesto, novo prefeito do Distrito Federal, que o nomeou. Mas, sendo baiano, ele não tinha grande contato com o magistério do Rio. Como eu havia tido um contato com educadores na gestão de Fernando de Azevedo, acharam que devia ajudá-lo nessa tarefa. Fui nomeado seu secretário.

A administração Anísio Teixeira foi talvez a mais completa que se fez no Rio de Janeiro. Além de melhorar a escola primária, criou o ensino secundário, até então dirigido inteiramente pelo governo federal, e a renomada UDF, Universidade do Distrito Federal. Na redação da Constituição de 1934 houve uma grande luta em torno das correntes principais que se digladiavam no Brasil — a corrente católica, que queria introduzir o ensino religioso na escola, e a corrente dos chamados liberais, que eram liderados pela Associação Brasileira de Educação e tinham no Anísio Teixeira um de seus mentores. Essa constituição foi muito importante porque, pela primeira vez, criou-se um capítulo sobre educação, definindo-se como seria organizado o ensino no Brasil.

É preciso lembrar que em 1933-34 Hitler subia ao poder e as esquerdas lutavam contra o nazismo. Também no Brasil tivemos a organização das correntes de esquerda e de direita. A esquerda, com a Aliança Nacional Libertadora e o Partido Comunista; a direita, com a Ação Integralista Brasileira. Tudo isso pesou sobre a administração do Anísio Teixeira. Acusado de estar comprometido com a esquerda, ele teve que se demitir, o que fez com uma célebre carta, em que mostrava ser apenas um democrata.

Como foi o seu trabalho com educação de adultos, desenvolvido na gestão do Anísio Teixeira?

Antes da administração do Anísio, havia, além do ensino primário para crianças, o noturno, para adultos, mas era muito precário, com professores sem preparo e nomeações políticas. Anísio criou os cursos populares noturnos, ampliando o número e melhorando suas condições e a qualidade do professorado. Como era um setor por assim dizer novo na administração, fui designado em 1933 para dirigi-lo. Em 1935, isso tudo se liquidou com a saída do Anísio.

Ao se inscreverem nesses cursos, as pessoas comunicavam mais ou menos a instrução que tinham e nós organizávamos programas quase sob medida para os vários grupos. O regulamento permitia também organizar cursos em sindicatos e associações de classe. Havia na Gamboa uma instituição de operários, chamada União Trabalhista, e recebi a incumbência de planejar cursos para essa gente. Eles queriam cursos avulsos e palestras de nível mais alto — história, ciências sociais. Convidei, para elaborar o programa, o Valério Konder, que eu conhecera em 1933, quando fiz concurso para inspetor de ensino do Estado do Rio de Janeiro. Seus programas abordavam a questão das classes sociais e isso foi considerado uma coisa altamente subversiva...

Os cursos seriam dados pelo professor Hermes Lima, uma espécie de coordenador político do Pedro Ernesto, pelo Valério Konder, pelo Edgar Sussekind de Mendonça (como o Valério, também considerado um homem de esquerda) e por mim. Publicamos o plano num documento oficial, que acabou aparecendo naqueles célebres arquivos, quando foram presos os líderes comunistas, com os quais não tínhamos qualquer relação. Não sei como, mas isso apareceu lá e nos causou sérios problemas. Fui preso em 1936 - um ano depois da queda da reforma de Anísio Teixeira - na minha superintendência desses cursos. Em junho de 1937 fui solto, absolvido pelo Tribunal de Segurança. Não tinham fundamento algum aquelas acusações.

Como foi esse tempo na prisão?

Estiveram presos comigo diversos professores universitários: Hermes Lima, Castro Rebello, Leonidas Resende... Como é que íamos passar o tempo, pessoas que só se dedicavam ao ensino? Havia gente de todo tipo presa lá, então organizamos uma espécie de universidade popular. Tinha um rapaz romeno que ensinava russo, um outro que ensinava inglês e também fizemos cursos de alfabetização para as pessoas mais humildes. Foi uma espécie de "universidade na cadeia" e me nomearam reitor dessa universidade. O Graciliano Ramos menciona isso em Memórias do cárcere.

Qual foi sua participação na administração do Gustavo Capanema?

Na administração do Capanema, que começou em 1938 e durou todo o Estado Novo, houve uma reforma do Ministério da Educação. Criou-se o cargo de técnico de educação e abriu-se um grande concurso, que exigia uma defesa de tese. Eu me achei obrigado a fazer aquilo, pôr à prova a minha carreira de educador, e obtive, enfim, esse cargo de técnico de educação. Como já não se podiam acumular cargos, tive que deixar tudo o mais. Mas essa carreira nunca se definiu e o Ministério da Educação passou a ser um órgão quase exclusivamente burocrático. Não tinha a ação que imaginávamos que podia ter, a de traçar uma política de educação no Brasil. Convidado então por Lourenço Filho, diretor do recém-criado Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), dirigi as Seções de Documentação e Intercâmbio e de Inquéritos e Pesquisas desse instituto. Aí procuramos avaliar verdadeiramente a situação em que se encontrava o ensino no país e traçar algumas normas gerais que levassem o Ministério da Educação a exercer efetivamente suas funções.

É nessa época que o senhor começa a mudar sua concepção sobre a educação no país? Pode nos falar sobre as idéias que desenvolve então?

Ao contrário da maioria dos educadores, comecei a desacreditar na educação escolar como um ingrediente mirífico, uma espécie de fermento que, se fosse polvilhado sobre o país, produziria o milagre de seu desenvolvimento. Comecei a ter uma concepção mais realista, mais sociológica da educação. Que a educação não é uma coisa que se sobreponha a uma sociedade. As condições de educação brotam da própria estrutura social, e isso se comprova observando a chamada "pirâmide" de matrícula e freqüência escolares. Há uma grande massa (ainda hoje) de analfabetos, um contingente de população mais pobre que entra na escola e não fica nem dois anos, e, no ápice da pirâmide, um pequeno número de pessoas privilegiadas que chegam ao ensino superior. Como se vê, é o próprio retrato das condições econômico-sociais do país.

Passei a divergir um pouco dos meus grandes mestres - Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho, os cardeais da educação brasileira, no dizer de Afrânio Peixoto. Trabalhei com todos os três, muito intimamente, mas no fim de algum tempo comecei a discordar dessa concepção de educação. É um pouco utópico pensar que a educação produz transformações sociais profundas. A escola é muito mais um produto da sociedade em que ela se organiza do que influi para transformar essa sociedade. Os meios de transformação são outros, é o movimento político, são as ações dos partidos políticos, não é a escola. A escola tem muito mais a função de preservar a própria estrutura social. A educação escolar é sempre conservadora porque é sempre vigiada pela classe que está no poder.

A que o senhor atribui essa mudança no seu ponto de vista?

À minha própria atividade administrativa, principalmente a de inspetoria de ensino em zonas do interior do Rio. Comecei a ficar chocado com a diferença que percebi quanto às oportunidades de educação segundo as diferentes categorias sociais. As pessoas de maiores recursos podem dar uma educação melhor aos filhos e eles têm condições então de ascender aos mais altos níveis de escolaridade. É tão óbvio, que depois me perguntei como não tinha visto isso antes. Hoje, por exemplo, não tenho nenhuma ideologia. Chamaram-me de marxista. Sim, eu me definiria como um homem mais para a esquerda, nesse sentido de considerar que só uma mudança de estrutura social daria oportunidade de educação a todos. Como isso vai se dar, não sei. Tem acontecido em alguns países de uma forma, em outros, de outra. Para mim, o problema fundamental do Brasil é o da concentração de renda. Acho impossível transformar a educação num bem que seja distribuído de acordo com oportunidades iguais para todos numa sociedade com diferenças tremendas de distribuição de renda. Numa sociedade com essa estrutura tão antidemocrática, não há possibilidade de se cumprir este preceito fundamental da democracia. Agora, porque a escola não é o veículo da reforma social não se deve deixar de fazer a melhor educação possível. Os educadores devem lutar para que a estrutura escolar existente seja a melhor possível. Vejo com grande alegria a luta dos professores por melhores salários. Desde o século XVII há greve dos professores nas universidades. E hoje a gente ouve dizer que as universidades não devem entrar em greve... Vejo com grande satisfação esse movimento de união dos professores para exigir melhores condições de trabalho, de remuneração e pela dignificação da profissão, pela democratização da sociedade.

O senhor, que passou por uma escola normal conceituadíssima, como vê a formação dos professores na atualidade?

A carreira de professor primário tinha um conceito bastante elevado, especialmente à época da reforma do Instituto de Educação, na administração do Anísio Teixeira. Hoje, a carreira não tem mais o mesmo conceito. É verdade que isso decorre de vários fatores, entre eles o grande aumento da população, um fator a que muita gente não presta atenção. A crise econômica do país também influi diretamente. O tipo de moça que hoje procura o Instituto de Educação (e não vai nisso nenhum desapreço à pessoas) é de nível econômico e de meios culturais muito mais baixos, porque os salários são muito baixos. Há uma crise geral que abastardou a profissão e que se traduz concretamente nos salários. Como é que uma professora pode continuar sua formação, o seu desenvolvimento, fazer curso, se ela mal pode sobreviver do ponto de vista da própria alimentação?

E como o senhor vê a crise na universidade, hoje?

Há um desejo de que nossas universidades trabalhem com o ritmo imediatistas das empresas industriais, que visam naturalmente acima de tudo, o lucro, e devem atender às exigências da concorrência entre elas. Esta é uma tremenda falácia. A função da universidade não é reproduzir robôs humanos em série, nem realizar pesquisas para acudir às necessidades da indústria. Para isso, elas próprias, as empresas, que promovam e financiem as pesquisas que julgarem necessárias. A tarefa específica da universidade é preparar pessoas competentes nas áreas de conhecimento que escolheram, com uma ampla e sólida base de formação humanista e dotadas de agudo senso crítico que as leve a nada aceitar pelo critério de imposição e autoridade. Isso, evidentemente, não convém aos regimes autoritários, centralizadores, antidemocráticos e antipopulares, que preferem yes-boys para preencher os quadros de sua tecnoburocracia civil e militar, subserviente e anticriativa, ou para servir à máquina da produção industrial que deve trabalhar com o máximo de eficiência, segundo seus próprios critérios, em benefício dos "donos do poder".

O senhor foi o criador da Revista do Museu Nacional, uma espécie de precursora de Ciência Hoje. Como e por que lhe ocorreu a criação desta revista?

Em 1942, eu trabalhava no Inep, quando o Roquette Pinto deixou a direção do Museu Nacional por força da lei de desacumulação. Heloísa Alberto Torres, que o sucedeu, chamou-me, por sugestão de Venâncio Filho (grande amigo, como um pai para todos nós, educadores), para desenvolver a seção de Extensão Cultural. Assim, fui transferido do Inep para o Museu Nacional.

Levei para o museu o Vítor Straviasky, professor de ciências naturais do Instituto de Educação, com a finalidade de desenvolver contatos com o magistério secundário. Ele teve a idéia de dar cursos para professores e foi por aí que começamos. Foi então que surgiu a idéia da Revista do Museu Nacional — ela levaria nossa mensagem às escolas. A revista teve grande sucesso. Começou com cinco mil exemplares e chegou a trinta mil. Saíram cinco números. Quando deixei o museu em 1947 para trabalhar no Instituto Nacional do Cinema Educativo, onde fiquei até 1961, quando me aposentei, o número seis estava pronto, mas nunca foi publicado.

O espírito da revista era o de elevar o nível do ensino das ciências. Podíamos oferecer aos professores secundários um rico material porque contávamos com o acervo do museu e com a colaboração dos naturalistas de suas quatro divisões.

Mesmo após sua aposentadoria, o senhor continuou trabalhando e refletindo sobre a educação no país. Depois de mais de sessenta anos de dedicação ao tema, teria alguma conclusão a relatar?

De certa forma, vou repetir o que já disse. A repetição, segundo a velha e sábia pedagogia, é o método mais eficaz na aprendizagem. É preciso não esquecer nunca o preceito básico de que somente numa sociedade verdadeiramente democrática será possível o florescimento de uma escola democrática e popular, uma escola que satisfaça a todas as legítimas aspirações do povo e de seus professores e educadores.

 


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